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Dia do Brandeiro 2023 comemora transumância e garranos na paisagem
Texto de José Rodrigues Lima
A Branda da Aveleira é uma das muitas Brandas que se encontram espalhadas pelas zonas mais altas do concelho. Situada no lado esquerdo da estrada de acesso a Santo António e Riba de Mouro é constituída por cerca de 80 construções muito rústicas, de sobrado e corte térrea. Estas casas formam no entanto, um conjunto ímpar, não só pela beleza e tipicismo, como por serem de fácil acesso. Algumas destas construções, mostras representativas da tipologia popular local, foram recuperadas de modo a devolver-lhe a traça e respectivas características sem descuidar o conforto exigido. Foram cuidadosamente decoradas com mobiliário rústico de acordo com a saudável vida da montanha que por ali se leva.
O turista terá a oportunidade de passar umas férias tranquilas, em contacto com a vida simples da aldeia e convívio com as suas gentes. Poderá usufruir de uma espectacular paisagem e outros recursos naturais, dos usos e costumes, do património monumental e paisagístico, da variedade gastronómica e de uma importante riqueza que se consubstancia na disponibilidade de uma significativa área do Parque Nacional Peneda Gêres.
Quando temos forças fazemos labores com o logões, concertamos o tarambelho ou couçoelha ou limpamos a bezerreira. A Festa Convívio do Dia do Brandeiro é sempre no primeiro sábado de Agosto, e este ano é no dia 5 do mês das férias. Venham ouvir os gaiteiros e os tocadores de concertinas.
Caminhos Patrimoniais
Há caminhos patrimoniais não rompidos, onde sentimos o mítico e conhecemos a história e as estórias.Temos necessidade de descobrir os lugares da memória e a alma dos lugares. A paisagem sonora e olfactiva convidam-nos a percorrer itinerários de sabedoria e a descobrir os tons e os aromas que nos elevam.
Lançar olhares diferentes e aprofundados pelo território geocultural das terras de montanha como são as brandas, assinalando de modo especial a Branda da Aveleira como marcas culturais de muitos brandeiros que se abrigavam nas cardenhas, construções rusticas, utilizando a pedra dos sítios bem registados.
Recordamos os nossos avós: “estas paredes erguidas, / pelas mãos dos nossos avós, /são muitos vidas sentidas, / que falam dentro de nós”.
Declaração patrimonial
A declaração patrimonial proclamada a 7 de setembro de 1996, e inserida no Projeto Cultural Memória e Fronteira preconiza a comemoração do dia do brandeiro.
Está estabelecido que no primeiro sábado de agosto se proceda à homenagem a todos aqueles que seguiam a rota da transumância da parte baixa da freguesia da Gave, para as terras altas da aveleira, apascentando o gado bovino, caprino e cavalar. Pretende-se perpetuar a diversidade cultural existente naquele espaço e transmitir para o futuro, “lugares e vivências humanizadas”, a 1020 metros de altitude.
Memória Colectiva
No concelho de Melgaço, as povoações são lindas no verde da ribeira e no castanho da montanha, onde as relações da boa vizinhança são testemunhadas pela adaptação, hospitalidade e reciprocidade. Há comunhão com a ancestralidade, com os antepassados e com a terra. Acompanhados por Marcel Mauss, podemos reler “os fenómenos sociais totais”, desta terra onde Portugal começa e o mar não chega.
A Branda da Aveleira, conjunto harmonioso de montanha, contém uma paisagem cultural com tons cinzentos e acastanhados, e diferentes aromas, numa altitude de 1.120 metros, onde o ar é puro e as águas cristalinas e leves.
Os brandeiros que comungam com estes pedaços de terra, onde cada espaço está denso de permanência e universalismo, foram protagonistas e construtores de uma trama espessa e indissolúvel, onde os factores geológicos, ecológicos e económicos operam uma constante simbiose que contribui para a coesão social, em que o ideário celtista deixou marcas perduráveis.
“As artes da sobrevivência conviveram com a arte de viver na solidariedade activa”, de acordo com sociólogo A. Joaquim Esteves.
A branda é um testemunho clarividente dos homens que pastoreando os seus rebanhos, praticavam simultaneamente o cultivo do centeio, da batata e do feno. A branda é fruto de uma longa elaboração humana e manifesta uma memória colectiva, ao mesmo tempo que evidencia um saber/estar, saber/fazer e saber/ser.
Conforme investigação recente, a experiência de brandeiro foi vivida por crianças de 8 ou 9 anos registando-se, a propósito, a seguinte quadra popular “Óh minha branda querida/ terra da minha afeição;/ onde cresci menina, / e amei a vida em boão”.
‘Chicolateira’ velhinha
Os homens do cajado firme, verdadeiros serranos seguiram anos a fio a rota da transumância, partindo da parte baixa da freguesia da Gave para a Branda da Aveleira, acompanhados de emoções misturadas com a aventura, e inseridos numa comunidade agro-pastoril.
Homens possuidores de segredos, de carácter firme, de mundividências sábias a quem se pode aplicar o poema: “Na sombra dos tempos/ os velhos sabiam/ ouvir as vozes do mundo a falar/ onde o segredo é saber calar”.
O murmurar dos ribeiros da Aveleira, do Vidoeiro e do Calcado, que na junção das águas dão corpo ao rio Vez, confirmam o que Miguel Torga escreveu, procurando comungar o sabor da terra de montanha: “Um mundo de primária beleza, de inviolada intimidade, que ora fugia esquivo pelas brenhas, tímido e secreto, ora sorria de um postigo acolhedor e fraterno”.
Cardenhas com cúpula falsa
Um brandeiro na meninice, e que seguiu a vida académica, o investigador Lourenço Alves descreve com base nas suas vivências, cheias de prolongados caminhos e silêncios profundos, aqueles espaços serranos da montanha de harmonia singular, utilizando uma linguagem pitoresca: “Os campos de cultivo situam-se nos baixos à volta dos lugares. Aí, pelos fins do mês de Maio, lavrados os campos e cerrados os portelos, inicia-se o processo de transumância. Impelidos pela falta de pastos para o gado, os brandeiros, munidos de provisões para a semana, deslocam-se com os animais para os altos”.
Assim, encontramos a branda pastoril, agrária ou mista, conforme a actividade mais destacada no cimo das encostas.
“Vedados aos pastos pelos fins do Inverno, estes campos de feno estendem-se, pletóricos de verdura, por entre renques de carvalhos e castanheiros, num desafio escandaloso de aroma e cor aos múltiplos talhões de giesta e tojo. Pelos fins de Julho dá gosto ver os segadores, a cortar o feno já maduro, num ritmo cadenciado que arranca gemidos lúbricos à lâmina da foice…
Por meados de Agosto, depois de bem seco o feno, os brandeiros da “juntança”, meia noite passada, apõem as vacas ao carro dirigindo-se para os altos, a fim de carregarem o feno que transportam numa chiadeira constante”.
Aliás, a poesia popular revela estes momentos, com a seguinte quadra:
“Couções d’amieira
Apoladouras de giesta
Eixo de nogueira
Todo o caminho
É uma festa”.
Para se abrigarem, os brandeiros construíram as denominadas cardenhas, com cúpula falsa, tratando-se de construções simples feitas com a pedra que se encontra no próprio local e se utiliza tal como aparece. Na parte superior durante a noite, dorme o brandeiro; na parte debaixo, descansa o gado, defendendo-se, por ventura, do lobo.
Estas casarotas sem idade cobertas de cinzentos líquenes são bem a imagem da aspereza primitiva da vida das gentes serranas, frugal e dura, revelando uma tendência ancestral inconsciente.
Segundo os investigadores Fritz Kruger e Leroi-Gourhan “os grupos mais simples construíram, através dos tempos, abrigos redondos, e os de mais posses construções quadrangulares”.
Podemos referir que estes testemunhos lembram memórias célticas. Aliás, é de sublinhar que na área da Branda da Aveleira, existem do período Neolítico cinco mamoas.
“Estas paredes erguidas / pelas mãos dos nossos avós; São muitas vidas sentidas / Que falam dentro de nós.”
CUIDAR DA CASA COMUM
“… Por fim, talvez sejamos irmãos…
… Cada parcela desta terra é sagrada para o meu povo…
… Somos parte da terra e do mesmo modo ela é parte de nós próprios. As flores perfumadas são nossas irmãs, o veado, o cavalo, a grande águia são nossos irmãos; as rochas escarpadas, os húmidos prados, o calor do corpo do cavalo e do homem, todos pertencemos á mesma família…
… A água cristalina que corre nos nossos rios e ribeiros não é somente água; representa também o sangue dos nossos antepassados…
… Que seria dos homens sem os animais? Se todos fossem exterminados, o homem também morreria de uma grande solidão espiritual. Porque o que suceder aos animais, também sucederá ao homem. Tudo está ligado.
Devem ensinar aos vossos filhos que o solo que pisam são as cinzas dos nossos avós. Ensinem aos vossos filhos que a terra está enriquecida com as vidas dos nossos semelhantes, para que saibam respeita-la. Ensinem aos vossos filhos aquilo que nós temos ensinado aos nossos, que a terra é nossa Mãe. Tudo o que acontecer à terra acontecerá aos filhos da terra.”
Propomos para o espaço geo-cultural da Branda da Aveleira:
1 – Que a mesma seja classificada como paisagem protegida;
2 – Que se proceda a uma florestação equilibrada com espécies autóctones e protegidas, como o carvalho, o vidoeiro, o castanheiro, o azevinho e outras;
3 – A criação de um eco-museu em que as cardenhas ocupem um lugar de destaque;
4 – Aproveitar a Branda para o turismo serrano e cultural, mas moderado;
5 – Que se promova todos os anos o Dia do Brandeiro, aproveitando para o convívio o contributo valioso para a resolução dos problemas que os preocupam e para a preservação e promoção destes espaços;
6 – Fomentar a educação patrimonial para “olhar o futuro do passado”.
Acrescentamos à Declaração de 1996:
7 – De acordo com a Carta da Terra (2000) “transmitiremos às futuras gerações valores, tradições e instituições que apoiem, a longo prazo, a prosperidade das comunidades humanas e ecológica da Terra;
8 – Perspectivamos “adoptar em todos os níveis, planos e regulamentações ao desenvolvimento sustentável que façam com que a conservação e a reabilitação ambiental sejam parte integral de todas as iniciativas do desenvolvimento;
9 – Sugerimos o objectivo do Ano Internacional das Montanhas (2002) que preconiza a proteção dos territórios de montanha.
10 – Conforme doutrina expressa na Encíclica “Laudato Si” (Sobre o cuidado da casa comum) (“015), do Papa Francisco: “integraremos a história, a cultura e a arquitectura de um ugar, salvaguardando a sua identidade original”.
Paisagem Cultural
Paisagem Cultural é uma categoria de bem cultural estabelecida pela UNESCO em 1992.
O conceito é definido pela interpretação entre o ambiente natural e as atividades humanas, onde se criam tradições, folclore, arte e outras expressões da cultura, resultando em uma paisagem natural modificada. Na discrição da UNESCO, as paisagens culturais são “ilustrativas da evolução e da sociedade e dos assentamentos humanos ao longo do tempo, sob a influência de condicionantes e / ou oportunidades físicas apresentadas pelo seu ambiente natural, e de sucessivas forças sociais, económicas e culturais, tanto externas quanto internas.
Esse conceito foi uma evolução de ideias sobre paisagismo desenvolvidas na Europa e Estados Unidos a partir do sec. XVIII, na perspetiva de uma natureza, jardim, onde o homem exercia um papel decisivo em sua organização “ uma natureza recriada e moldada como os valores estéticos do homem”, como disse Cristiane Magalhães. A partir do fim do sec. XIX foram incorporadas definições de geógrafos da Escola de Berkeley, que cunharam o termo kulturlandschaft, cuja tradução é exatamente “ paisagem cultural”, mas para eles a natureza pouco tinha a ver com essas paisagens. Em 1925, no trabalho The morfology of landscape, Carl Sauer propôs a superação da divisão entre paisagens da natureza e paisagens da cultura, proposta que foi aprofundada e adotada pela UNESCO.
A criação da categoria, enquanto bens de caraterísticas especificas, ofereceu novos mecanismos de estudo e conservação dessas paisagens. Segundo Simone Scifoni, “ o enfoque da paisagem cultural permite, assim, superar um tratamento compartimentado entre o património natural e cultural, mas também entre o material e imaterial, entendendo-os como um conjunto único, um todo vivo e dinâmico.
Não podemos deixar de referir o especialista Jorge Enrique Pais da Silva e o seu livro “Pretérito Presente”, que sustenta uma teoria da preservação do património.
Devemos lembrar à ação do etnógrafo José Rosa de Araújo e as suas expressões: “É preciso ter os olhos sem remelas e os ouvidos escabichados cruzando aspetos patrimoniais escritos em livros”.
Garrano: o bravo cavalo da montanha
A especialista do estudo dos garranos, Andreia Amorim Pereira registou no livro “Garrano o bravo cavalo da montanha” o seu pensamento que transcrevemos com a devida vénia.
“Com uma presença milenar no Noroeste Ibérico, o garrano desenvolveu estreitos laços com os povos que habitaram este território desde o Neolítico inicial, em tempos de paz e em tempos de guerra. O garrano funde-se com a história de Portugal. Lado a lado com o Homem, tanto em árduas batalhas, como a puxar o arado, montado ou atrelado nas pequenas e grandes viagens, usado como meio de transporte por almocreves, padres e médicos, ostentado como símbolo de riqueza e exibido em feiras e festividades. A sua memória surge inscrita em gravuras rupestres, em motivos decorativos da Idade do Ferro, em moedas de ouro cunhadas na primeira dinastia, assim como na literatura portuguesa oitocentista.
Esta imbrincada relação do garrano com a nossa identidade coloca-nos, simultaneamente, perante um desafio e uma oportunidade: preservar este legado cultural e genético e reinventar as funções do garrano nos modos de vida, aspirações e necessidades das novas gerações, a fim de tornar sustentável a preservação desta importante espécie autóctone e de valorização do seu território nativo.
Face a este desígnio, urge dar a conhecer as características da raça garrana, a nível zoomórfico e comportamental, compreender por que motivo as serras do Minho oferecem ao garrano um habitat perfeito e perceber o contributo do garrano para a preservação da biodiversidade e para o equilíbrio ecossistémico das pastagens naturais de montanha. É fundamental também fazer renascer a ligação das nossas populações com o garrano, reconstituindo de forma acessível a narrativa histórico-arqueológica da presença desta raça equídea no Noroeste Ibérico, em busca das suas origens, e recuperando uma dimensão significativa da nossa memória coletiva, onde o garrano surge como parceiro épico de batalhas e conquistas, precioso aliado das comunidades rurais no quotidiano agrícola e motivo de exibição nos dias de festa”.
A referida investigadora Andreia Amorim Pereira vai participar no dia do Bandeiro, através de uma comunicação.
Turismo de Aldeia
Com o intuito de preservar a riqueza cultural existente na Branda da Aveleira, vários proprietários candidataram-se ao programa LEADER II do Vale do Minho, recuperando as cardenhas e adaptando-as a fim de serem utilizadas pelos turistas que apreciam o silêncio da montanha, os valores significativos do património natural e cultural, dando assim descanso ao corpo e paz ao espírito. Possuindo condições para a usufruição turística, a branda responde a grupos sociais que privilegiam o contacto com a flora e a avifauna, ao mesmo que escutam “os sons do silencio”.
Bibliografia:
- FERRO, Gaetano, “Sociedade humana e ambiente, no tempo”. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979.
- OLIVEIRA, Ernesto Veiga de, “Construções primitivas em Portugal. Lisboa, Publicação Dom Quixote. 1991.
- PAVILHÃO DO FUTURO – Exposição Mundial do Lisboa, Catálogo Oficial, 1998. POIRIER, Jean, “O tempo, o espaço e os ritmos”. Lisboa, Editorial Estampa, 1998.
- RIBEIRO, Orlando, “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico”. Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1986.
- Garrano – O Bravo cavalo da montanha (vários), coordenação Andreia Pereira Amorim e José Paulo Vieira, ED Câmara Municipal de Viana do Castelo 2018.
- Domingues, Valdemiro Barreiros, “O Viver na Montanha – Brandas do Alto Minho” (conversas sobre nós), 7 de Setembro 1996, não editado.
- Medeiros, Isabel “Estruturas Paturis e Povoamento na Serra da Peneda”, Centro de Estudos Geográficos, Universidade de Lisboa, I.N.I.C., 1984.
- Olhares Multidisciplinares – Branda da Abeleira (vários), coordenação de José Rodrigues Lima, edição Câmara Municipal de Melgaço, 2001.