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“Não há nenhum festival que faça uma coisa destas, que se ligue à população como nós”
Em 2024, o cinema celebrou em Melgaço a 10ª edição de um festival que tem na sua génese a arte audiovisual na linguagem com que o cinema deu os primeiros passos. Afinal, quer o “Roundhay Garden Scene” (1888), de Louis Le Prince, quer “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière” (1895), dos imãos Lumière, são fragmentos de filme documental.
A comemoração assinala os dez anos de edições do MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço, que vem criando um habitat de cineastas e entusiastas deste cinema verité no concelho raiano, onde há cerca de 20 anos – fá-los em 2025 – se ousou criar um museu de cinema com base na coleção de Jean-Loup Passek, que dá nome ao museu e aos prémios para os melhores do MDOC.
Em 2024, o festival organizado pela Associação AO NORTE, que tem à cabeça, na curadoria e direção Carlos Eduardo Viana, Rui Ramos, Daniel Maciel, José da Silva Ribeiro e Patrícia Nogueira; além da colaboração e parceria do Município de Melgaço, assinalou a programação com 22 estreias no grande ecrã, por entre os 31 filmes a concurso.
O mundo em Melgaço chegou via cinema, com retratos de países como a Indonésia, França, Rússia, Alemanha, Áustria, EUA, Itália, Canadá, Países Baixos, além de Portugal. Mas não é aí que o MDOC ganha pontos pela originalidade.
A organização, liderada por Carlos Eduardo Viana destaca o compromisso que o festival estabeleceu com a comunidade através dos documentários produzidos no âmbito da residência cinematográfica Plano Frontal, que já produziu, a validar-se o trabalho de campo das equipas em exercício académico no ano de 2024, quarenta documentários sobre a gente e as referências culturais de Melgaço.
O projecto “Quem Somos Os Que Aqui Estamos”, outra das valências do festival, é também um dos ‘carros fortes’ desta organização que desenhou um festival que se imiscuísse na comunidade. Envolve investigadores locais, como o geógrafo melgacense Álvaro Domingues e o sociólogo Albertino Gonçalves, assim como outras duas figuras a quem já fizemos referencia em edições anteriores e que já vem sendo visitas frequentes do território, como o fotógrafo João Gigante e Daniel Maciel, o investigador que, antes de cada edição, passa cinco meses numa das freguesias do concelho para descobrir o espólio fotográfico que a comunidade encerra dentro de baús e, após curadoria, as torna em exposições de interesse público, histórico e de orgulho para os locais. Ou em pequenos filmes documentais em Fotografia Falada, ou mesmo em livro, onde participam os investigadores e a comunidade.
“É sempre um pedido corajoso, mas sentimos que é uma linguagem muito boa para responder também a uma ânsia que existe, não só em Melgaço, mas também em Melgaço, de preservar e salvaguardar o conhecimento da comunidade. Portanto, as pessoas que aceitam esses desafios, no caso da fotografia falada, fazem-no com plena consciência de que aquilo que elas estão a fazer é importante para a preservação da memória. O nosso trabalho de trazer a câmara de filmar, o microfone e as perguntas estruturadas é um trabalho de ir ao encontro de uma necessidade, e nós sentimos isso em todas as freguesias em que já conseguimos trabalhar a linguagem da fotografia falada”, nota Daniel Maciel.
Há seis anos que esta partilha de álbuns familiares tem feito história em diferentes plataformas: Da exposição em galerias improvisadas em Juntas de Freguesia ou Sedes de associações ao registo audiovisual e em livro, este último é certamente o mais caro, mas aquele que, a cada fim de pesquisa por Freguesia, “deixa em livro, cria um objeto que materializa e fica na Freguesia, nas casas das pessoas. É um lado que insistimos que aconteça”.
“Por exemplo, o último livro [Quem Somos Os Que Aqui Estamos – Castro Laboreiro e Lamas de Mouro], para além de ter as nossas contribuições, dos membros do projeto, teve a contribuição do historiador local, que é o Valter Alves, e teve a contribuição de castrejas que se juntaram a nós e também publicaram. E nós pretendemos que continue a ser assim, ou seja, que os próprios melgacenses sejam os contadores das suas histórias e que façam esse trabalho historiográfico também”, frisou Daniel Maciel.
Rui Ramos, o elemento da AO NORTE a quem cabe a direção de produção, dá nota das dificuldades em gerir a programação que implica a permanência de 250 pessoas em Melgaço durante a semana do festival.
“As dificuldades passam essencialmente pela oferta, não é? Temos que fazer esta gestão de estadias, alimentação e preparar-nos para receber 250 pessoas que se inscrevem diretamente. Ocupámos praticamente todo o alojamento disponível. Temos um apoio fantástico e assente num protocolo de colaboração com a escola de Melgaço, que nos permite utilizar as suas instalações para fazer algumas ações de formação, e o fornecimento de duas refeições diárias para 250 pessoas. De outra forma, acho que seria impossível gerir”, notou o responsável.
“Nós sabemos que a maior parte do alojamento de maior dimensão, não está no centro da Vila e isso coloca-nos alguns problemas que têm de ser resolvidos. Isto pesa mais na estrutura, não só do ponto de vista de recursos humanos, mas também do ponto de vista também económico. Claro que é mais fácil organizar um festival num grande centro urbano do que propriamente em Melgaço, isso nós sabemos, mas também, se fosse fácil…”, observou.
Contudo, o festival propriamente dito, de exibição de filmes, que se mobiliza entre o refeitório da EB 2,3 S de Melgaço e a Casa da Cultura, o que poderia gerar um ‘circuito fechado’ naquela zona da vila, acabou por ser a solução que viabilizou o festival e evitou despesas maiores, como frisa Carlos Viana.
“Trouxe-nos uma vantagem enorme, porque nos primeiros anos do festival era o nosso maior problema. As pessoas tinham de ir a almoçar à vila, e os restaurantes não tinham capacidade para os acolher [o grupo]. Nós tentámos, mas não conseguíamos. Depois havia ainda o problema dos transportes. Isso causava-nos aqui um fim do mundo. Agora, tudo o que é consumido aqui é comprado aqui. Os números são extremamente importantes e o cálculo está feito: entre 70% a 80% do orçamento do festival é gasto em alimentação, alojamento e transportes. E fica aqui”, ressalva.
A linguagem de aproximação ao publico local está, em linhas gerais, definida para um povo que se quer ver retratado e mostrar à geração futura a sua história. “Eu acho que este ano consolidámos o trabalho que tem sido feito nestes últimos seis anos e consolidámos de uma maneira que me pareceu ser muito bem-sucedida. Estamos em Alvaredo, o processo está a meio, ainda não temos resultados finais, mas a campanha que decorreu em Alvaredo depois destes anos de aprendizagem, de como trabalhar, como aprimorar métodos de aproximação às pessoas e de como trabalhar estes conteúdos, foi de uma recepção avassaladora e que nos deixou muito agradecidos. De alguma forma, até com sentido de dever para com a população de Alvaredo, para a continuidade do projeto, que acaba em 2025”, diz Daniel Maciel.
“É inacreditável, sabendo eu o que ainda está por divulgar, porque fizemos uma seleção de cento e tal fotografias, de uma coleção que ultrapassa as 1500, que há coisas que ainda vão ser divulgadas absolutamente estonteantes. Registos audiovisuais e fotografias incríveis”, adiantou o curador desta recolha.