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Em agosto de 2025, no âmbito do MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço, a Freguesia de Alvaredo foi a contemplada com a exposição fotográfica, “Fotografia Falada” e livro com textos e fotos da comunidade local, resultante do trabalho da iniciativa “Quem Somos Os Que Aqui Estamos?”.
O projeto, coordenado por Álvaro Domingues e Daniel Maciel, convidou várias pessoas da comunidade de Alvaredo a participar com histórias e memórias da freguesia. Palmira Pereira (Romeiros de São Brás), Fátima Mira (Homenagem à Tia Aurora), Paula Lira e Maria José Lira (Santa Bárbara) e Virgínia Ferreira (Os Serões de Antigamente | As Batelas do Rio Minho), são algumas das colaborações para a edição em livro – edição impressa limitada a 300 exemplares – que imortalizam momentos e histórias da História local.
A história/memória que transcrevemos abaixo é da autoria de Isabel Domingues, que, conjuntamente com Venâncio Fernandes, recordam infâncias vividas sobre o mesmo terreno e de infâncias feitas “de chão, de mato, de rio, de riso solto no meio da lida dos adultos”.
A criança corria descalça ou com os soques, feitos à medida pelo soqueiro local, pelos caminhos da aldeia, com os joelhos sujos de terra e o coração cheio de alegria.
Cada caminho de terra batida, cada pedra do rio, cada cheiro a lenha queimada, cada som das correntes do rio que corriam para o mar, faziam parte do seu mundo íntimo, como se as fronteiras entre lar e aldeia não existissem. Conhecia cada recanto como quem conhece as repartições da casa. De lugar em lugar ouvia histórias contadas pelos mais velhos à sombra das varandas ou das árvores centenárias.
Mas havia algo que o fascinava mais que tudo. Que chamava por ele. O rio Minho. Era mais do que um curso de água: era o eixo da aldeia, a linha invisível que unia comunidades, histórias e modos de vida.

Ao longo das suas margens resistiam silenciosamente as pesqueiras, construções ancestrais de pedra que desafiam o tempo e a corrente. Mais do que simples estruturas para a pesca da lampreia, salmão, sável ou da savelha, as pesqueiras são marcas vivas de uma cultura enraizada na relação íntima entre o homem e o rio. Elas não são apenas pedra sobre pedra: são história, são memória, são pertença.
Durante séculos, estas pesqueiras passaram de pais para filhos, de avôs para netos, com o mesmo cuidado com que se passa uma herança valiosa. Não é só o saber da pesca que se transmite – é o respeito pelo rio, o conhecimento das correntes, o valor do trabalho partilhado e a força da identidade coletiva.
O rio foi o grande mestre dessa criança. Era o velho amigo, presença constante e formadora. Desde os 7 anos que acompanhava o pai nas lides da pesca, via-o a armar e a desarmar as redes. Foi nele que aprendeu a nadar desde tenra idade e, com apenas oito anos, já o atravessava até Espanha, com a naturalidade de quem cruza um pátio. O rio, como a aldeia, ensinava em silêncio. E o vício começou aí. Chegava a faltar à doutrina para ir para o rio arriscando mais uma “coça” ao chegar a casa. O mesmo rio que era fartura numa altura em que era escassa. A fartura obrigou a práticas de conserva do peixe pela salga ou pelo fumo.
As lampreias eram sabiamente escaladas e abundavam nos fumeiros, lado a lado com os presuntos e os lacões. As pias de pedra estavam sempre cheias de camadas de postas de sável com sal. A criança comia tanto peixe que, por vezes, fazia caretas quando a mãe lhe resmungava, mais uma vez, que o almoço era sável cozido.
O pai, ocupado a fazer e a remendar as redes para as pesqueiras-botirões e cabaceiras-, não tinha tempo para ensinar. Mas o filho observava-o em silêncio e, às escondidas, foi reproduzindo aqueles gestos, assimilando saberes antigos como quem herda um tesouro. Era assim que se aprendia: por osmose, pela convivência, pelo tempo partilhado.
A criança foi crescendo também nos gestos da terra. Porque nessa altura os filhos constituíam força braçal para ajudar nos trabalhos do campo e do rio. Participava nas segadas e malhadas do centeio nas eiras, nas desfolhadas ao anoitecer, nas lavradas com os arados e as juntas de bois/vacas, nas vindimas acarretando os cestos carregados de cachos brancos e tintos. Sachava, rendava e regava o milho. Ia ao moinho de água moer a farinha para o pão que era cozido no forno de lenha. Já ia ao rio desarmar e armar as pesqueiras. Era o que mais gostava de fazer.
O trabalho fazia parte do seu corpo e da sua memória, mas havia também alegria: os serões animados com grafonolas, gira-discos ou concertinas, as festas da aldeia que eram motivo de convívio e comida melhorada.
Uma infância vivida entre a terra e a água, entre o trabalho e a festa, entre a dureza da vida e a doçura dos rituais. O rio Minho, sempre presente, era espelho e fonte – da subsistência, da infância, da alma da aldeia.

Cerca de 15 anos depois, outra criança – diferente no tempo, mas tão parecida na essência – viveu as mesmas tradições. Já não andava descalça (pelo menos por necessidade) apesar de ainda usar soques. Continuava a percorrer os caminhos da aldeia com uma liberdade que, hoje, não existe, com o tempo nas mãos e o mundo por conta própria.
A aldeia cuidava — com olhos invisíveis nas janelas e corações atentos por detrás das portas entreabertas. A liberdade era uma extensão da confiança, e a infância fazia-se de chão, de mato, de rio, de riso solto no meio da lida dos adultos.
Essa liberdade não era apenas movimento, era pertença. Era estar em casa em qualquer ponto da aldeia, fosse a eira, o moinho, o tanque ou a margem do rio Minho. Hoje, essas liberdades estão encerradas atrás de cancelas invisíveis: o medo, o ruído, a pressa. Mas naquela altura, bastava o som do sino ao longe ou o cheiro do pão a cozer para saber que se estava no tempo certo, no lugar certo — e livre.
Tratava os mais velhos, com quem aprendeu muito aquilo que não se aprende na escola, por tu. Não por falta de respeito, mas por carinho. Fumava às escondidas as pontas dos Kentuckys que o Américo deixava nos cinzeiros e bebia-lhe a jeropiga do pequeno barril à entrada da adega. Já não era obrigada a trabalhar muito. Os pais tentavam “poupar” os filhos obrigando-os a estudar para terem um futuro melhor.
Nas malhadas ainda ecovam risos e os malhos a bater na eira. As desfolhadas ainda reuniam mãos que sabiam trabalhar e celebrar, sempre à espera do milho rei. As vindimas continuavam a ser festa, esforço e comunhão e deixavam as mãos cheias de melaço ao apanhar os bagos caídos e o refugo, que os mais velhos teimavam em não deixar para trás. As lavradas já não se faziam com o arado mas com o trator.

A par do trabalho duro, de uma agricultura de subsistência, e a simplicidade do quotidiano, havia também tempo para rituais, traquinices e alegrias partilhadas. Ainda se cantavam os Reis de porta em porta, com quadras maliciosas dirigidas aos donos das casas – mais brincadeira do que ofensa.
Ainda se roubavam vasos na noite de São João, deixando-os no largo do Maninho ou à porta da Capela.
Ainda se ia buscar a água do monte para regar o milho em noites de luar, à luz trémula da candeia, com o vento a sussurrar nas folhas e o silêncio a embalar os passos.
Ainda se comia o caldo sentado à lareira, com o lume a estalar como companhia. Ainda se alumiava a São Tomé com as fachoqueiras, entre risos e berros com quadras a pedir proteção e abundância.
Ainda se acompanhava o Compasso Pascal de casa em casa, abrindo portas, corações e despensas. A cruz era recebida com devoção e alegria e, à sua passagem, provavam-se as maravilhas da gastronomia local e o vinho que aquecia os sorrisos. Era tempo de fé, mas também de partilha, de reencontros.
E, mais uma vez, a aldeia era o lar fora de casa, e os vizinhos, cúmplices de infância, histórias e afetos.
Apesar das duas infâncias estarem separadas no tempo, o fio que as une é forte e invisível: o laço de pertença, de identidade construída na terra e na partilha. Ambas as crianças cresceram a entender que a vida em comunidade é mais do que vizinhança – é solidariedade, é herança, é memória viva que se renova a cada geração.
A aldeia era o seu mundo. Não conheciam outro. E talvez por isso, essas memórias ficaram gravadas como raízes que nunca se perderam. A infância foi vivida entre a terra e a água, entre o trabalho e a festa, entre a dureza da vida e a doçura dos rituais. E tudo isso lhes moldou as almas —almas feitas de pertença.
As tradições que viveram deixaram marcas fundas. Não apenas na memória, mas no jeito de olhar o mundo com olhos de quem sabe que pertence a um lugar.
A aldeia ensinou-lhes o valor do tempo, o poder das raízes, e a beleza de uma infância moldada pelo coletivo.
Duas infâncias, separadas pelo calendário, mas ligadas pela alma. Porque quando uma comunidade é forte, o passado e o presente andam de mãos dadas e a aldeia, com os seus rituais simples e profundos, continua a ser o coração onde todas as gerações se encontram.
Aquelas vivências moldaram-lhes o caráter, o sentido de pertença, o respeito pela terra, pelos gestos, pelas tradições.
Com o tempo, nasceu também um desejo: o de guardar essa herança, de não a deixar morrer com eles. Ambos desejam que as gerações futuras saibam que ali, naquela aldeia que era casa, pulsava uma vida feita de simplicidade, força e beleza. E que, mesmo sem palavras, ela ensinava tudo.
Mesmo longe, levaram consigo mais do que malas: levaram memórias, levaram sotaques, levaram as festas e os cheiros e sabores da infância. Era o sentimento de pertença. Essa raiz invisível que liga a identidade de um povo, onde quer que ele esteja.
Hoje, as novas gerações brincam em novas calçadas-ou quase não brincam-, aprendem outras palavras, mas continuam a ouvir as mesmas histórias – às vezes por videochamada, outras ao vivo, no calor de uma visita que sabe a reencontro- e a viver as mesmas tradições. Mesmo adaptadas ao tempo, permanecem. E com elas, a vontade de transmitir às próximas gerações aquilo que as anteriores ensinaram: a importância de saber de onde se vem, de manter viva a memória, e de cuidar daquilo que nos une. É a força de um ciclo que teima em não romper apesar das ameaças- novas tecnologias, novas rotinas, novos desafios-.
Estas duas crianças carregam a missão de manter viva a identidade da comunidade que os formou.
Curiosamente aquilo que as aproximou foi o rio Minho e as pesqueiras.
Hoje, mesmo que a pesca artesanal tenha perdido espaço para as exigências da modernidade, as pesqueiras continuam a ligar gerações. São lugares de encontro e de histórias contadas à beira da água, são testemunhas de um tempo em que a vida seguia o ritmo do rio. São também símbolo de resistência, lembrando-nos que é possível preservar tradições sem renunciar ao futuro. Há jovens que, movidos pelo exemplo dos mais velhos, voltam às pesqueiras. Não apenas para pescar, mas para reconectar-se com a terra e com os seus. Outros, mesmo longe, mantêm viva a memória dos dias passados ali, ao lado do pai ou do avô, ouvindo histórias ao som do rio.
As pesqueiras do Minho são mais do que património material: são pontes entre gerações. Nelas vive o espírito de uma comunidade que honra o passado, valoriza o presente e constrói, com as mãos e o coração, um futuro onde as raízes não são esquecidas, mas celebradas.
Duas gerações separadas pelo tempo, mas unidas por um mesmo fio invisível: o compromisso com a memória, com os valores e com a esperança de que o futuro mantenha viva a essência do passado. Porque construir a identidade de uma comunidade é, acima de tudo, um ato coletivo de amor, continuidade e responsabilidade.
As raízes, mesmo que escondidas sob a terra, continuam firmes, sustentando tudo o que ainda está por vir.
As crianças são o Venâncio Fernandes e a Isabel Domingues. A aldeia, Alvaredo.
