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Melgaço no tempo do Cine Pelicano: cinema, teatro… e muito mais!
Quem desce a Rua Direita na histórica vila de Melgaço, em direção à Porta de Baixo da muralha, encontra um edifício em ruínas onde apenas as paredes de conservam de pé. Ali era o velho Cine Pelicano, um antigo espaço cultural desta vila onde, além de cinema, havia teatro, bailes, entre outros eventos.
O Cine Pelicano marcou algumas gerações de melgacenses, não só pelos filmes que projetava, mas também por outros eventos culturais tais como teatro e bailes.
A Câmara Municipal de Melgaço entendeu por bem homenagear este antigo espaço de cultura, atribuindo o seu nome ao Largo (imediatamente a oeste do edifício) e à Travessa com o mesmo nome (a norte do mesmo), que ladeiam o velho edifício.
Apenas os de mais bonita idade terão conhecido o Cine Pelicano. Para os que desconhecem a História deste velho espaço de cultura, aqui ficam algumas informações que conseguimos reunir. A existência deste espaço está intimamente ligada ao Sr. Hilário Alves Gonçalves (1898-1985), natural de Monção, que tinha atividade como comerciante em Melgaço. O mesmo comprou o edifício, que na época se encontrava em ruínas e procedeu à sua reconstrução, aumentando-o com um piso superior.
Segundo nos conta ROCHA (2010), no seu magnífico Dicionário Enciclopédico de Melgaço, o Pelicano foi inaugurado na década de trinta do século XX. Sabemos que em 1936, já ali houve bailes de Carnaval.
Sobre um desses bailes de Carnaval, Manuel Igrejas, num artigo do jornal “A Voz de Melgaço”, edição de 1 de Maio de 1995, conta-nos que “…Chegados ao Salão Pelicano subiram à sala de cima onde se ia realizar o baile. Daquela multidão que acompanhara o desfile, nem todos entraram. O recinto não comportava. Os que conseguiram entrar acotovelavam-se uns aos outros. A orquestra do Avelino do Peso já estava no estrado que servia de palanque e atacou uma bonita marchinha muito em voga na época, música essa, cujos acordes ainda agora soam na mente de algumas ex-crianças. O que devia ser uma dança virou uma balbúrdia. A meninada, muito novinha, a maioria, não sabia o que era dançar, agarravam-se umas às outras balançando-se, atropelando-se e caindo, para desespero dos adultos que viam as fantasias amarrotar-se. O Jacob e outros promotores entraram no meio tentando organizar a coisa. Aquela confusão. O baile prolongou-se por uma hora e como não havia maneira de dar jeito, resolveram reorganizar o cortejo e voltar para o terreiro onde as crianças poderiam divertir-se à sua maneira sem ter de obedecer ao compasso da música. E assim foi e a miudagem gostou.”
Nessa época, esta casa chamava-se “Salão Pelicano”. No dia 10 de Outubro de 1937, domingo, «Os vinte amigos de Monção», grupo de amadores, exibiram ali alguns dos seus números de teatro de revista ligeira. No jornal “Notícias de Melgaço”, na edição de 17 de Outubro de 1937, encontramos um texto sem menção ao seu autor com os seguintes dizeres: “Não devemos esquecer o talento do (…) Vasco da Graça Almeida e do seu colega Gualdino, que souberam corresponder com bastante agrado às exigências do público.”
O Cine Pelicano, propriamente dito, foi inaugurado a 11 de Abril de 1948. Na edição de 15 de Abril do mesmo ano do jornal “A Voz de Melgaço”, podemos ler acerca do assunto:
“Teatro Pelicano” – Foi inaugurado, solenemente, no passado domingo, o Teatro Pelicano, obra de bom gosto que o nosso conterrâneo e amigo Sr. Hilário José Gonçalves levou a cabo. A inauguração teve uma tarde de estudo e de arte regional: a festa que a Juventude Católica Feminina promoveu, com uma notável conferência do Padre Comesana e as canções e bailados regionais das freguesias de Rouças, Cousso, Gave Penso e Vila. À noite, exibiu-se o primeiro filme. Teatro Pelicano honra a nossa terra e é justo, portanto, que consagremos o esforço e a tenacidade do Sr. Hilário. Desejamos-lhe as maiores prosperidades.”
Num artigo do jornal “A Voz de Melgaço”, da autoria de Joaquim Rocha, na sua edição de 15 de Abril de 1991, recorda-nos Melgaço nos anos cinquenta, onde o cinema tinha lugar de destaque para alguns:
“Como era Melgaço na década de cinquenta? Muita gente que viveu esse período ainda está viva, felizmente, e lembrar-se-á certamente desses tempos difíceis mas, de qualquer modo, saudosos. (…) A cultura não física, nesse tempo, limitava-se ao cinema. Havia sessões às quintas-feiras à noite e domingos de tarde e à noite. Passavam no Cine Pelicano muitos filmes de cow-boys, de capa e espada, policiais… Estava na moda o Joselito (voz de rouxinol) e a Marisol. O Tarzan deliciava a malta nova; o Robin dos Bosques e seus maravilhosos companheiros davam lições de coragem e de fidelidade ao seu rei ausente. O Cantinflas fazia rir até os mais sisudos. Os filmes do Tótó, do Fernandel, dos irmãos Marx, e do inesquecível Charlot, deixaram na nossa memória momentos inefáveis.
Os filmes inspirados na bíblia eram maravilhosos: «Os Dez Mandamentos» (EUA, 1956), «Sansão e Dalila» (EUA, 1950), etc. Um filme que fez chorar toda a população do concelho foi «Fátima». Os pastorinhos a serem interrogados pela autoridade, a dificuldade que tiveram em fazer-se acreditar, tudo isso provocava nos espectadores uma onda de choro sentido. Quando saíam do cinema ainda levavam os olhos cheios lágrimas. Enfim, recordações.”
Num artigo da autoria de Manuel Igrejas no periódico “A Voz de Melgaço”, o mesmo nos recorda esses tempos:
“O senhor Hilário reformara o salão Pelicano, dotara-o de moderna aparelhagem e assumira a exibição dos filmes. Estes, os filmes, eram noventa por cento americanos. Em Portugal já se faziam filmes de total agrado da população, porém, as empresas distribuidoras só alugavam filmes nacionais para cada dez filmes estrangeiros. As pessoas mais simples não discorriam que o que o cinema mostrava era fictício, mentira.
O que causava reboliço entre a rapaziada eram os filmes históricos e de guerra; pelo jornal da tela ficavam sabendo o que acontecia nos países mais “evoluídos”, coisas fabulosas ou importantes que comparadas com o bucolismo da terra achavam que ali não acontecia nada.”
Do mesmo autor, convocamos um outro texto onde nos transporta para o Pelicano nos seus primeiros tempos:
“O Salão Pelicano, na sua fase primitiva era dividido em três categorias, a geral do meio do salão até ao palco, a superior do meio para trás e o balcão em cima, uma galeria encostada à parede esquerda e à parede de trás. A geral era de bancos corridos para dez pessoas onde sempre cabia mais alguém, a superior de cadeiras de madeira assim como o balcão.
Nas noites de cinema, perto da bilheteira que era interna, juntava-se a maior parte dos rapazes da terra, filhos de gente humilde que não tinha dinheiro para aquela extravagância. Ficavam ali a pedir a uns e a outros que os deixasse entrar com eles ou esperando a distracção do porteiro para escapulir lá para dentro. Essa distracção sempre acontecia quando o pedinte era parente ou amigo, como no caso do Rogério.
No verão, tempo de férias, o Dr. Juiz Pinto, conselheiro de Estado, residente em Lisboa, vinha para a sua vivenda na vila de Melgaço. Os rapazes ficavam todos contentes quando o Senhor Doutor Juiz Pinto aparecia. Justava com o Pires um preço especial para deixar entrar toda aquela malta. E lá entravam vinte ou mais rapazes que sentavam no chão do palco, de lado para não atrapalhar a visão da plateia, com a cara quase enfiada no lençol que servia de tela para a projecção do filme. Os filmes sempre causaram furor naquela rapaziada.
Dos cinco anos até que começavam a namorar firme, o único tema para conversa ou para brincar era o que aparecia no cinema. Buck Jones, Frede, Ricardito, Tom Mix, Tarzan e as Cruzadas. Ah, as Cruzadas, que delírio provocou na garotada aquele filme.
O Rogério assistia ao cinema porque era primo do porteiro da geral, o Toninho do Augusto do Félix e o Manuelzinho, além do irmão do Toninho era filho do bilheteiro o dito Augusto do Félix. O Papá Pires como era conhecido na intimidade, pioneiro do cinema no Alto Minho, era o empresário. Toda a aparelhagem para a projecção dos filmes fora feita por ele, os componentes que ele não podia fazer comprava-os no Porto ou Lisboa e às vezes em segunda mão. Isso tanto no na fase do cinematógrafo mudo como depois no sonoro. Era o Pires, naquela época, o cientista das redondezas. Entendido em tudo e arauto das do progresso. Todas as novidades da técnica e da ciência se instalavam naquela vila através do Pires: automóvel de praça, serviço de alto-falantes, atelier de fotografia, mecânica, o gramofone, gramofomola, solda de oxigénio e rádio. Tinha uma oficina particular com todas as ferramentas existentes na época onde fazia o que lhe viesse à cabeça ou o que fosse necessário para ele ou para os outros…
E entre várias invenções teve uma sensacional. O Salão Pelicano, propriedade do Sr. Hilário, comerciante da terra a quem o Pires pagava aluguer pelo uso era pequeno; a máquina de projecção ficava encarrapitada numa cabinezinha no alto do balcão no meio do público e entre outros inconvenientes produzia muito barulho com o seu trabalho. Então o Pires idealizou colocar a máquina num aposento lateral, uma sala onde às vezes se faziam bailes. Foi feito um buraco na parede para deixar passar o facho de luz que incidia num espelho pendurado no tecto que por sua vez projectava-o na tela fazendo um ângulo recto. Com isto acabou o ruído no salão, a projecção ficou melhor pois passou a haver mais distância entre o projector e a tela e os operadores tiveram mais espaço para se movimentarem. O resultado foi esplêndido e elogiado por quem entendia do assunto e Alfredo Chastre passou a ter ingresso grátis pois o espelho com as dimensões ideais era dele e o emprestava nos dias em que havia fita. Como íamos dizendo, o Papá Pires era o empresário e o Augusto do Félix, o alfaiate, seu vizinho e amigo era o bilheteiro e os filhos deste, o Toninho e o Gú, eram os porteiros e em troca dos Serviços prestados graciosamente toda a família entrava de graça no cinema… O Augusto do Félix tinha até um lugar especial entre a geral e a superior com cinco cadeiras que às vezes comportavam mais de dez pessoas. Por isso o Manelzinho, desde que se lembrava de existir sempre assistira ao cinema. Pequeno, de colo, chorava nos filmes do Tarzan quando este lutava com os leões na floresta. E o Manel e o Rogério quando não brincavam de guerra medieval, brincavam de cow-boys. Os revólveres eram as chaves que tiravam das fechaduras, aquelas chaves de ferro forjado grandes e pesadas que se prestavam às mil maravilhas para aquela brincadeira. Tinha a chave da porta dos fundos que devia pesar mais de meio quilo, era a arma do Xerife que invariavelmente era o Rogério. Nesta época deviam ter seis e oito anos, o Manel era o mais novo. A tia Lúcia reclamava quando os via arrebanhar tudo o que era chave e depois da brincadeira deixavam espalhadas em qualquer lugar. O Manel ficava cismado porque a tia se aborrecia se elas não tinham utilidade a não ser para brincar, nunca vira as portas fechadas com a chave, até a porta da rua fechada na hora de deitar apenas se fazia com um trinco, a tranca vivia ao lado também sem utilidade. Coisas de gente grande.”
Todavia, no jornal “Notícias de Melgaço”, na edição de 25 de Outubro de 1959, fala-nos de teatro de revista no Pelicano:
“Os Modestos – No palco do Cine Pelicano, para o qual o pincel do melgacense João Barbeitos Lourenço com facilidade e felicidade pintou três cenas, estrearam-se Os Modestos conforme estava anunciado, levando à cena uma espectaculosa revista local e um pequeno quadro emocionante. Apresentou-os ao público o Sr. Padre Manuel Lourenço, digno abade de Fiães, que encontrou e em poucas e compreensivas palavras soube concentrar e transmitir a beleza do espectáculo. É para nós gratíssimo aplaudir a transfiguração dessas raparigas do campo e desses artistas de artesanato local, que no palco souberam pisar e dizer como não pisa nem diz muita gente de mais teres e instrução. Gratíssimo é também recolher dentro das quatro paredes em que se confina hoje minha vida, o eco agradável dos aplausos tributados por toda uma povoação ao velho amigo Vasco da Gama Almeida, que num ramo difícil do teatro como é a revista, soube frizar críticas oportunas sem ferir suscetibilidades de ninguém e do seu coração conseguiu arrancar pedaços, que por vezes foram vistos nas tábuas do palco a viver momentos de grande intensidade dramática.
Com estes ecos se juntaram uns outros, de louvor também, às senhoras D. Maria Teresa Alves Carabel, Maria Amélia Esteves Reis e Armanda Rodrigues que, muito embora as deixemos entrincheiradas atrás da sua modéstia louvável, foram pelo seu gesto e esforçada cooperação quem assegurou pelo sentido da vista dos espectadores o êxito de esta tão louvável iniciativa. Embora todo o corpo cénico desempenhasse airosamente os seus papéis e portanto cada figura da companhia concorresse com a sua quota parte para grande êxito dessas duas noites de glória, mandava a justiça destacar neste momento o trabalho dos actores e actrizes mais salientes, mas como estamos em Melgaço e eu não pertenço ao elenco, dispenso-me de representar agora o papel da Discórdia nas bodas de Tétis e Pelén lançando para o palco outra maçã de oiro o letreiro – Para o melhor actor. E como a música do Prof. A. Costa, outro melgacense, agradou e caiu no ouvido, recebam toda a companhia e seus empresários parabéns com muitos obrigados pelo bilhete oferecido.”
No dizer de ROCHA (2010), “…na década de sessenta do século XX, com a ida de parte da população para o estrangeiro, e a chegada também da televisão, o cinema perdeu imensos clientes, o que levou ao seu encerramento. Em 1993 o edifício estava à venda; foi adquirido pelo fundador do Museu de Cinema de Melgaço, o francês Jean Loup Passek, e ofereceu-o ao dito Museu. Aguarda obras.
Todos os melgacenses nascidos na primeira metade do século XX foram, pelo menos uma vez, ao Cine Pelicano ver um filme, uma peça de teatro, assistir a um baile de Carnaval. A música para os bailes, era da inteira responsabilidade – geralmente – dos irmãos Gonçalves Pereira (Gorro, Toneca, etc.), nascidos na freguesia de Prado, e seus filhos, todos eles excelentes artistas. Nos intervalos havia caldo verde, bebidas, não frescas, pois nessa altura ainda não havia frigoríficos em Melgaço! A categoria dos filmes variava: por vezes viam-se bons filmes, outras vezes eram medíocres. Os filmes cómicos – Cantinflas, Charlot, Fernandel, Vasco Santana, António Silva, etc., faziam rir a gente até às lágrimas. Os dramas: Romeu e Julieta, Amor de Perdição, etc., faziam-nos chorar. Havia também o Joselito, a Marisol, entre outros, que nos encantavam com as suas maravilhosas vozes. O teatro era prata da casa; o Vasco da Central escrevia as peças, arranjava uns quantos rapazes e raparigas do concelho, talentosos, ensaiava, e eis que surgia a obra!…”
Aguardemos pela tão desejada recuperação deste edifício e que está previsto que fique ligado ao Museu de Cinema cá da terra o que faz todo o sentido…
Texto: Valter Alves
Adaptação p/versão online: João Martinho