Melgaço aprofunda “Raízes” com o projeto que vai imortalizar testemunhos e saberes do povo melgacense

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Começou por ser uma ideia académica, esteve em ‘banho-maria’ durante anos, mas acabou por sair à rua num dia assim, à altura do confinamento devido à pandemia Covid-19 e junta-se ao rol de coisas positivas a resultar de dois anos de incertezas.

Isabel Domingues, Historiadora, mentora do projeto, deu substrato e regou as raízes das ideias que resultavam da ligação emocional à terra que a viu nascer e crescer. “Sentia que os potenciais humano, patrimonial e cultural de Melgaço eram tão vastos e tão ricos que mereciam ser inventariados e preservados por forma de assegurar a transmissão às gerações vindouras”, começa por explicar.

Mas abordagem ao tema daria protagonismo à comunidade que guarda e vive com esses saberes. “As iniciativas que perduram são aquelas que saem de dentro para fora, ou seja, que saem do seio da comunidade. Por vezes, é apenas necessário acordá-las (as comunidades) para que o sentimento de pertença comece a ser sentido e valorizado”, indica Isabel Domingues.

A ideia da historiadora melgacense foi reunindo em torno os mais diversos profissionais de sectores que acrescentam à iniciativa: Ângela Ribeiro (investigadora, bióloga de formação), Luís Borges (professor e fotógrafo) e, mais recentemente, Valter Alves (professor e investigador).

Isabel Domingues realiza o trabalho de terreno, sinaliza os temas, efetua recolha documental, faz a ligação à comunidade, organiza as entrevistas e toda a logística necessária para a recolha de imagem (fotografia e vídeo). Ângela Ribeiro, ligada às questões ambientais e de sustentabilidade e às comunidades locais enquanto agentes de mudança, colabora no terreno a organizar os processos, partilha e organiza as ideias e também faz recolha documental, dentro da sua área. Luís Borges representa “os olhos do projeto”. Com a sua câmara consegue captar “a essência e autenticidade das pessoas, das paisagens e a relação do homem com a natureza e eternizá-las numa imagem”. A mais recente adição à equipa, o professor e investigador Valter Alves, que muitos conhecerão pelo trabalho de investigação sobre a história de Melgaço, contribuirá na área da pesquisa bibliográfica.

“Quase todas as temáticas exploradas possuem um elo comum: a relação do homem com a natureza e as diversas formas como utiliza os recursos naturais para a sua vida cotidiana. Os nossos antepassados viviam em parceria com a natureza. A perceção que tinham do mundo era muito diferente da nossa: as pessoas não se viam como seres separados da natureza. Para eles, a natureza era viva e, portanto, sentia e reagia, como todo ser vivo. Hoje, a velocidade de vida proposta pela sociedade global impede-nos de apreciarmos os ciclos naturais, enfatiza o consumismo, faz uma apologia do ensino uniformizado e leva à extração dos recursos naturais de forma não sustentável; tudo isto converge na perda de património tradicional que foi construído ao longo de gerações no estreito relacionamento com a natureza”, considera a historiadora melgacense Isabel Domingues, a quem fizemos algumas questões sobre o Raízes, de que iremos ouvir falar ainda mais no futuro próximo.

A Voz de Melgaço (AVM) – Qual é a missão do projeto Raízes e que “causas” em prol da história local tem assumido ultimamente?

Isabel Domingues (ID) – O concelho de Melgaço é rico em tradições que merecem ser transmitidas às gerações mais novas. Muitas destas manifestações esfumam-se nas memórias, outras, permanecem ativas e merecem um persistente trabalho de recolha e preservação. São as memórias e as recordações das pessoas, enquadradas no tempo e no espaço. São histórias e vivências que muitas vezes a História não conta. Uma missão para aqueles que olham a cultura popular como uma âncora identitária em tempos de algoritmos e redes sociais. Essa é a missão do projeto RAÍZES. Visa criar alicerces para a (re)descoberta da identidade da comunidade Melgacense através do estudo das memórias e costumes locais. O objetivo é recuperar as artes e costumes em extinção e promover a memória dessas tradições ajudando a passá-las de geração em geração, contribuindo para a valorização da comunidade apostando na sua matriz identitária.

AVM – De que forma transformarão essa pesquisa e tornarão esse registo parte da comunidade de hoje?

ID – O projeto tem vários eixos de intervenção que podem decorrer de forma isolada ou paralelamente: Recolher e registar as memórias que o tempo dissipa através do contacto direto com as populações locais detentoras do saber fazer, através de registo oral, fotográfico, áudio e vídeo; Disponibilizar o registo dessas memórias e desse saber fazer em publicações e plataformas digitais; Promover exposições descentralizadas, nas aldeias, em colaboração com as juntas de freguesia, associações locais e residentes de forma a aproximar a comunidade e criar o sentimento de pertença; organizar oficinas temáticas para as comunidades locais e população escolar assim como o desenvolvimento de workshops, visitas e sessões de “storytellings” com os detentores das artes e ofícios tradicionais.

AVM – O último projeto de documentação e formação de saberes tradicionais teve a ver com as Pesqueiras e as artes da pesca. Que outros saberes tradicionais locais têm em carteira para explorar em próximas ações?

ID – A equipa do RAÍZES pretende conhecer a história do concelho pela voz de quem viveu este território, o construiu e percorreu. Como se trata de um projeto sem fins lucrativos e a equipa trabalha somente aos fins de semana ou nos tempos livres disponíveis, os resultados são mais lentos, infelizmente.
Para além do trabalho com a comunidade de pescadores, estamos a desenvolver algumas atividades na zona da montanha com os pastores e a explorar a temática da transumância, a arte de fazer as antigas croças, os cortiços tradicionais, entre outros.

Outra temática é a recolha de tradições ligados à gastronomia e à transformação dos produtos locais que estão em desuso, mas que constituíram o modo de vida das gentes de Melgaço. Um trabalho mais complexo e demorado que, para além da pesquisa bibliográfica, implica palmilhar o concelho entrevistar as pessoas mais antigas. O resultado será a edição de uma carta gastronómica. Não se trata propriamente de um livro de receitas, mas de um livro em que cada prato tem uma história associada. Para o efeito, foi lançado um apelo à população nas redes socais. Tivemos algum feedback e algumas surpresas, nomeadamente, do aparecimento de um livro sobre doces do convento de Fiães que já estamos a testar.

Muitas outras temáticas que gostaríamos de abordar, como o ciclo da lã em Castro Laboreiro com recurso às plantas para tingimento, a alumiada a S. Tomé, entre outros. O património é vasto e merece um projeto de longo alcance, sem constrangimentos temporais ou de outra ordem.

AVM – No que respeita à recolha de imagem, além do fotógrafo Luís Borges, que já deu provas do seu trabalho no registo sobre as pesqueiras, juntou-se Rui Pedro Lamy, segundo as redes sociais do Raízes, que estaria a gravar um filme documental na Branda da Aveleira. O que se pode saber desde já sobre o objeto deste documentário?

ID – Efetivamente, o Luís é um fotografo muito colaborativo e aquele que faz um grande esforço logístico para acompanhar o projeto, uma vez que tem que se deslocar desde Braga. Tal como os restantes membros é ávido por estes processos e por registar, através da fotografia, os gestos, movimentos, expressões e autenticidade das pessoas e a beleza das paisagens, plantas e animais, procurando sempre interferir o menos possível no equilíbrio do ecossistema. Apesar de ser apelidado como “o fotógrafo solitário” e dedicar grande parte do seu tempo livre ao que denomina de “fotografia rural”, em contexto do Parque Nacional Peneda Gerês, desde logo abraçou este projeto. Identificou-se com a “causa” e com a equipa. Além da fauna e da flora do parque, Luís fotografa também o trabalho das pessoas da região, o interior das suas casas e as suas tradições. Sente uma ligação emocional à terra, tanto que confessa ter dificuldade em apontar a objetiva a outros assuntos. O rio não era bem a sua praia, mas depressa se integrou na comunidade de pescadores e se adaptou à temática.

O Rui Pedro Lamy é um realizador e produtor português com um excelente percurso profissional que cruza a televisão e o cinema. Encontra-se atualmente, a desenvolver projetos na área do filme e fotografia documental, construindo ligações entre a ciência, a história, a tecnologia e a linguagem audiovisual. O seu projeto ETHNO, na sua base, tem muitas semelhanças com o nosso. Pretende tornar a linguagem audiovisual num veículo poderoso para contar a nossa história e dar a conhecer temas importantes da nossa sociedade, cultura e património, registando sempre, com paixão, esses momentos.
Ao contrário do resto da equipa, que tem outras profissões, o Rui vive dos seus trabalhos audiovisuais. A sua ligação ao projeto acaba por ser algo diferente. Gosta de filmar os saberes que não estão nos livros, mas sim na sabedoria dos mais velhos e que não é nada mais senão o caminho da nossa ligação com a fonte desse livro tão importante que é o livro sagrado da natureza, das práticas antigas que fomos esquecendo e substituindo por aquilo que é novo. Foi nessa missão que aceitou o convite para a realização de um documentário que reflete essa ligação do passado ao presente e do homem com a natureza, tendo como pano de fundo a Branda da Aveleira.

AVM – O investigador Valter Alves reforçou recentemente a equipa de pesquisa. Ganham, com esta adição, uma maior capacidade de busca e rigor nos dados históricos guardados e ‘perdidos’ em torres do tombo um pouco por todo o país?

ID – Sem dúvida! Embora grande parte do trabalho do RAÍZES assente no trabalho de terreno com registo das memórias, que o tempo dissipa, através do contacto direto com as populações locais detentoras do saber fazer, através de registo oral, fotográfico, áudio e vídeo há sempre um reforço, importante, com os dados históricos escritos.

AVM – No âmbito da pesquisa sobre a gastronomia tradicional de Melgaço, descobriram um livro com uma série de receitas conventuais do Mosteiro de Santa Maria de Fiães. Tal como este, há mais achados bibliográficos desconhecidos do público em geral que queiram resgatar do esquecimento?

ID – Neste âmbito, o objetivo é mesmo regatar receitas com histórias, receitas de conforto, que já não se praticam, por razoes de vária ordem, ou que se praticam esporadicamente ou mesmo que já tenham desaparecido.

Para além da recolha oral de pratos típicos que ainda persistem na memória das populações, existem receitas escritas que passam de geração em geração e que as famílias têm guardadas a sete chaves em homenagem aos seus antepassados.

Os pratos típicos de cada região são resultado da história desses territórios e das populações que neles vivem, das características edafoclimáticas, da agricultura, da pecuária e da pesca que aí vêm sendo realizadas ao longo dos tempos. É nos territórios e nas suas gentes que a gastronomia se inspira e se alimenta e Melgaço possui um enorme legado.

Curiosamente, num apelo à participação da comunidade surgiram algumas receitas familiares originais e um livro sobre receitas conventuais do Mosteiro de Santa Maria de Fiães, de Alfredo Saramago. Um doce surpresa! Não tínhamos conhecimento de receitas locais ligadas aos conventos de Melgaço (não falamos em receitas conventuais pois a maior parte não nasceu nos conventos). Este autor lançou, com regularidade, livros de gastronomia e de história e tradição gastronómicas. Utilizava as fontes escritas, mas também aquelas provenientes da tradição oral e da sabedoria popular.

Esta pesquisa sobre a gastronomia melgacense possui um duplo objetivo: registar, para a posteridade, todo este património gastronómico tão rico e em vias de desaparecer e potenciar o seu uso, seja na restauração, no enoturismo ou até pela comunidade. Só valorizando o que é nosso, as nossas raízes é que conseguimos diferenciar-nos enquanto território.
Atualmente, com as novas dinâmicas do turismo, a gastronomia local constitui uma “arma” turística pois reflete a identidade dos territórios e essa identidade, nalguns casos, já se tornou um produto turístico que faz movimentar a economia.

AVM – Nas redes sociais apresentam o projeto como proposta para “reverter a erosão cultural”. No caso de Melgaço, além dos investigadores, que geralmente vertem o fruto das suas pesquisas para o Boletim Cultural do município, só o Grupo Etnográfico da Casa do Povo de Melgaço transpôs para a prática o trabalho de investigação. O trabalho do Raízes pretende, não só ir aos arquivos recolher informação sobre as tradições, mas concretizá-las, dentro do possível, junto do seu povo? De que forma?

ID – Costumamos utilizar a frase “Pelas raízes pertencemos, fixamos, nutrimos e comunicamos” para justificar o nome do projeto. Se hoje não passamos sem um delicioso arroz de lampreia, sem uma lampreia seca assada na brasa ou sem um bolo da pedra com sardinhas e vinho quente, se não dispensamos ouvir histórias da transumância e de lobos, se fazemos quilómetros para assistir a cortejos etnográficos ou até se as nossas casas se embelezam com antigas cestas, croças ou mantas coloridas de lã de ovelha, devemos agradecer às gerações que asseguraram a perpetuação deste conhecimento até aos dias de hoje.

Melgaço está repleto de usos, costumes e tradições que merecem ser preservadas e passadas às gerações vindouras. A sua tipicidade geográfica marcada por duas zonas distintas – a ribeirinha e a montanha – ditou o modo de vida das suas gentes.

Presentemente, muitas das manifestações culturais locais vivem apenas nas memórias dos mais velhos, outras, permanecem pouco ativas. Ambas merecem um dedicado e persistente trabalho de recolha e preservação que contrarie as forças erosivas. Esta é uma missão para aqueles que olham a cultura tradicional como uma âncora identitária e que, em tempos VICA (voláteis, incertos, complexos e ambíguos), valorizam as memórias e as recordações das comunidades, enquadradas no tempo e no espaço. Essa é a missão do RAÍZES.

Pretende-se que o RAÍZES aguce a curiosidade natural de todos os públicos, mas esperamos, sobretudo, atrair a atenção dos jovens e criativos locais para um património singular que urge ser conhecido e valorizado. Os saberes tradicionais, reflexo dos usos e costumes da comunidade, devem valorizar-se procurando que sejam entendidos como um processo criativo gerador de valor cultural simbólico e capaz de viabilizar e integrar novas dinâmicas sociais e económicas, procurando inovar na utilização dos materiais, nas ferramentas e nos produtos a conceber. Os residentes reforçarão os valores identitários e os visitantes valorizarão a vida cultural e o património material e imaterial de Melgaço.

Esperamos, com o RAÍZES, reforçar o espírito comunitário para que a comunidade civil se apodere do que é seu, e que a define, e que de alguma forma a liga pelo fio do tempo… só assim esse espírito continuará vivo.

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