Vítor Covelo nasceu em Melgaço, literalmente, numa altura em que já só se nascia em Viana, mas não foi a tempo. Já não havia o antigo Hospital da Misericórdia – onde muitos melgacenses nasceram e do qual hoje podem solicitar um ‘certificado’ – mas sobreviveu ao parto feito no Centro de Saúde, quando toda a sua geração nascia em Viana, há cerca de 35 anos.

Depois, cresceu numa aldeia da freguesia de Cristóval, Marga, terra dos avós paternos, onde começou por cultivar o gosto pelas histórias que se contavam à noite, à lareira e em tantos outros palcos da vida.
Estudou em Melgaço até ao Secundário, depois foi para o Porto, para o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), onde estudou Medicina. Acabou o curso, fez o ano comum, que é um ano de estágios gerais, esteve um ano em Bragança, outro em Évora, e quando chegou o momento escolher a especialidade, escolheu no São João (Porto). Fez lá a especialidade e agora trabalha no hospital psiquiátrico Magalhães Lemos.
Em 2023 participou com uma curta-metragem académica no MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço, sobre o “Tanganhom”, um género de demónio muito particular de Parada do Monte, cuja história lhe foi passada por um jovem natural daquela freguesia de montanha de Melgaço.
Para referência, será “um homem que aparecia [ou diabo em forma de homem] que presidia as encruzilhadas de bruxas, ou que aparecia assim… Como era um homem que andava com um pau (um cajado) grande, e que era muito grande, chamavam-lhe o Tanganhom. Em Parada do Monte”, explica Vítor Covelo.
No mesmo ano em que tinha em exibição na Casa da Cultura de Melgaço a curta-metragem, um género de docu-ficção sobre o misticismo em Parada do Monte, inserida no programa de exibições do MDOC, ganhou alento para, no âmbito da residência cinematográfica promovida pelo mesmo festival, se lançar na realização de um documentário sobre Ribeiro de Baixo, um lugar da freguesia de Castro Laboreiro.
Nuno Mendonça e Rodrigo Queirós, que já tinham acompanhado a primeira experiência de realização de Vitor Covelo em “Tanganhom”, aceitaram o desafio para dar forma ao que agora é o documentário “Ribeiro de Baixo, Cabo do Mundo”, um dos mais aclamados da sessão de apresentação dos filmes, na abertura do MDOC 2024 e que já pode ser visto online no site Lugar do Real, plataforma da AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual, que é organizadora do festival de documentário de Melgaço desde o início, em 2014.
Mas como é que o cinema, documental ou não, chega à vida de Vítor Covelo, Psiquiatra no Hospital Magalhães Lemos, que até tem turnos, faz urgências e ainda tem de ir às vindimas em Melgaço?
“Não sei bem como surge. Acho que, antes disso, gostava muito de histórias. O meu avô, de Cristóval, contava muitas histórias de bruxas, de mouras encantadas, aquelas histórias típicas, locais, quando eu era criança e eu gostava muito disso. Depois também eu gostava muito de contar histórias, e de estar atento às pessoas. Acho que vem um bocado daqui, entre a história e contar histórias, etc. O cinema é um veículo, é uma arte na qual também o contar histórias também pode estar presente”, conta.
Teria dez anos quando um tio trouxe da Arábia Saudita uma câmara de filmar, amadora, mas uma porta aberta para a criatividade de Vítor Covelo.
“No verão, com os meus primos que vinham do Canadá e de França, fazia uns filmes. Imaginava uma história a fazia o filme na hora. Tenho um filme numa cassete e é engraçado. Eu chateava toda a gente. As personagens, como tínhamos poucas, tínhamos os bons e os maus, era o género o que fosse, uns punham umas máscaras. Como não podia editar o filme, porque não era digital, não tinha computador para fazer isso, o filme saía todo direto. E eu como é que fazia a banda sonora? Pagava naqueles walkmans de cassete, metia os headphones à volta da câmara e carregava no play ao mesmo tempo. As cenas com música são todas com assim. E o áudio ali até estava bom, mas era com os fones na câmara”, recorda o realizador/psiquiatra que ainda tem muito para contar ‘on tape’.
A cutra-metragem “Tanganhom”, o seu primeiro experimento na realização ‘a sério’ surge através de um curso de cinema em película promovido pela “Rua Escura”, uma produtora do Porto, enquanto desafio de fim de curso.
Foi também aí que Vítor Covelo descobriu, a par da autenticidade da imagem e da música que compõe a banda sonora dos filmes, que os sotaques e as gírias de cada povo seriam uma das suas preocupações.
“Acho que é muito negligenciado, no geral. Temos muitos filmes que se passam no Portugal rural, mas depois chegam lá e toda a gente fala à moda de Lisboa, o que é horrível. Quando estou a ver isso na sala de cinema, fico doente, porque o sotaque em particular é a diversidade cultural”, assume.
“Há várias razões para isso acontecer. Uma, obviamente, tem a ver com orçamentos e com os atores, que não têm tempo para se preparar. Para fazer sotaques diferentes precisam de formação, precisam de trabalho, é muito complicado. Outra, tem a ver com o preconceito que há com os sotaques diferentes, principalmente para o pessoal de Lisboa. Há sempre um estereótipo associado a sotaques diferentes, sempre de baixo nível socioeconómico, de menos diferenciação, que é uma parvoíce completa, atualmente, mas há”, procura ainda justificar.
O Ribeiro de Baixo surge na incursão cinematográfica de Vítor Covelo a propósito de uma série de temas pré-selecionados pela produção do festival, mas os temas que a equipa acabaria por escolher foi diferente do inusitado da antena de comunicações instalada naquele local, nem tão pesado quanto a finitude do lugar, que imaginaram no início.
“O Ribeiro de Baixo calhou. Eu achei interessante porque era um sítio que eu nunca tinha ido, apesar de conhecer bem Castro Loureiro. Quando chegámos lá, ficámos muito deslumbrados com o sítio, aquilo é mesmo incrível. Começámos a falar com a Dona Umbelina – que é uma das intervenientes do documentário – e ouvi uma história muito interessante. Havia umas histórias que ela contava sobre o cirurgião de Várzea Travessa [um lugar da mesma Freguesia], que seria, há muito tempo, o médico ou cirurgião dali, e havia umas peripécias que ele tinha tratado. Uma era de uma senhora que ia dar à luz, mas a criança não saía. Então ele disse para a porem num carro de vacas a descer o Ribeiro [de Baixo], e no final a criança nasceu”.

Teria a história um fundo de verdade? Vítor Covelo admite que, pelo menos a personagem da história, tem um fundo coincidente com o de um seu antepassado.
“O avô da minha avó, de Cristóval, era de Castro, de Várzea Travessa, e era cirurgião. Eu acho que era o mesmo. Eu tentei explorar um bocado essa história, mas como não havia mais registos… As pessoas que conheciam era só ela [Umbelina Bernardes] e eu também, do meu lado, não tinha muito material. Tenho uma fotografia dele [do avô da avó] e tinha um livro dele receitas, feitas à mão, um boticário. Foi a única coisa que sobreviveu, das coisas que ele tinha. As pessoas, na altura, queimaram tudo, porque não houve um grande seguimento. Filhos e tudo mais, sempre ficaram em Cristóval, não valorizavam muito os registos”, observou.
O tema central de “Ribeiro de Baixo, cabo do Mundo” surgiria naturalmente, de conversas com as pessoas que vivem num local recôndito onde o sinal de estrada sem saída e a ideia de finitude está em tudo, mas também é local onde as cabras bebem vinho (misturado com água) e se olha a montanha com atenção ao lobo, aos espíritos e às luzes premonitórias.
“Começámos a ver esta questão das premonições de morte. Porque quando olho para o sítio, primeiro a pessoa contempla um bocado o que se passa ali e logo vem a ideia: O que é que vai acontecer a isto? Estes residentes vêm de um tempo muito particular, que teve vivências muito específicas lá, que não voltam e que já aconteciam há décadas e décadas. E acabam ali, mesmo em termos de conhecimento e tudo mais. É um ciclo. Olha-se e percebe-se logo isso, não é? Que aquilo vai acabar. Então a mim interessava-me trazer elementos que evocassem um bocado a questão de fim, de premonições e tudo mais”, nota Vítor Covelo.
“A placa que indica Rua Sem Saída, aparece duas vezes no filme, é um bocado evocativa do Sem Saída, do fim. A questão das premonições de morte vem um bocado daí, a temática. Não é uma coisa explícita, mas, para mim, leva-me a pensar também nisso. Até aquela questão dos terrenos, não é? Se uma luz aparece num terreno, de de alguém dali, mas agora é um problema, com as partilhas e tudo. Não se sabe. Quem é que morreu? Quem é que vai morrer?” reflete.
A ideia de finitude não está apenas associada ao fim de um modo de vida naquele lugar raiano, mas também ao de cada um, que desaparecerá engolido pela mesma serra que em vida protege e dá o pão.
“Nós falámos temáticas fortes, com a Umbelina em particular. A casa dela é em frente ao cemitério onde tem a campa dela e do marido. Está lá, já aberta, e ela vê a campa da janela da cozinha. Isto foi uma coisa que me marcou, mas depois era muito pesado pôr isto assim, era muito explícito”, conta o realizador, que preferiu, ao tom do povo, explorar as finitudes de forma mais bem-humorada.
“Uma das coisas que nos deu confiança para ter este lado mais cómico foi a Umbelina. Apesar de falar dessas coisas, ela tinha sempre um sorriso, tinha esta coisa cómica. Ela mesmo dizia, “isto é assim, mas eu não tenho medo”, sempre assim”.
É também da espontaneidade de três das residentes que surge um dos melhores momentos do filme, quanto, a pretexto de mostrar a ‘corna’ – um corno de vaca transformado num género de corneta que se dizia para espantar o lobo – geram uma encenação teatral sem qualquer indicação do trio de realizadores.

“Nós só tínhamos dito, como havia aquela história da corna, de o lobo se ter afastado por causa da corna, que achávamos muito engraçado. Perguntamos se a podia trazer, para vermos e para depois usarmos o som. Juntaram-se ali duas ou três e começaram a representar. Nós não dissemos nada, ficamos só a olhar e elas ali a fazer um teatro, espontâneo, foi lindíssimo. Depois só dissemos, pá isto tem de estar no filme!”.
Pode o documentário ser, no futuro, um manual sobre como era viver no Ribeiro de Baixo? Vítor Covelo admite que pode ser uma parte da pedagogia que vai fazer falta sobre os locais rurais, um dia.
“Nós sabemos que, daqui a uns tempos, se aquilo se perde – e vai acontecer – qualquer pessoa chega ali e não vê nada. Não há história de nada. São só pedras. Só que já passou por ali muita história, muita vivência”.
Vítor Covelo

Sinopse do documentário Ribeiro de Baixo Cabo do Mundo (2024):
“Três forasteiros chegam ao lugar de Ribeiro de Baixo, na raia minhota, onde misteriosas luzes noturnas anunciam a morte dos seus habitantes. No silêncio do vale, Áurea e Umbelina passam os dias a olhar o gado, através da fronteira, entre histórias de encontros com o lobo e de costumes ancestrais. Da França, chegam os netos que casualmente acompanham a aldeia no contemplar do crepúsculo de uma geração e de um modo de vida”.
Link para o documentário, aqui.
A 11ª edição do MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço acontecerá de 28 de Julho a 3 de Agosto de 2025.