Das Arquitecturas Tradicionais ao Minho moderno: “As construções de hoje não precisam ficar reféns do granito, mas respeitar a volumetria”

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O documentário “Das Arquitecturas Tradicionais”, realizado por Carlos Eduardo Viana e produzido pela AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual para a CIM – Comunidade Intermunicipal do Alto Minho, no âmbito do projeto ALTO MINHO 4D, tem nos bastidores um dos olhares atentos à arquitetura regional que dá nome ao produto audiovisual.

Fernando Cerqueira Barros, natural de Arcos de Valdevez, arquitecto desde 2011, com pós-graduação em Património e escritório no Porto, tem assumido o Minho como principal ‘cliente’ e é por isso (e pelas suas influências académicas) que a arquitetura alto-minhota não lhe é indiferente. O seu olhar e experiência chamou a atenção da produção do documentário “Das Arquitecturas Tradicionais”, de quem foi consultor científico e autor do texto narrado em voz-off por António Durães, complementando uma série de contributos para a concretização de um objeto fílmico que, apesar de estreia discreta em Melgaço, é um importante documento “para fins pedagógicos, de investigação e culturais” e para que cada alto-minhota conheça as suas raízes. Disponível online, em: https://lugardoreal.com/video/das-arquitecturas-tradicionais.

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As suas influências foram figuras de referência como o arquitecto António Menéres, um dos participantes do Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa, promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos entre 1955 e 1961; Rocha Peixoto, “o primeiro a tratar estes temas com levantamento fotográfico” e que terá visitado Castro Laboreiro em finais do século XIX.

Fernando Cerqueira Barros é, no cenário de hoje, um continuador do trabalho de etnógrafos, arquitetos e arqueólogos que desde finais do século XIX tem pesquisado sobre o modo de vida das populações. Já vários debates se fizeram e com várias linhas de influência, desde a mais conservadora, como será o caso de Raul Lino, aos mais ‘críticos’, que participaram do inquérito, o caso de Fernando Távora, Keil do Amaral, Nuno Teotónio Pereira e mesmo António Menéres, o incontornável arquitecto que participou da equipa da Zona 1 (correspondente ao Minho) e que não tem parado de mostrar o que a publicação apoiada pelo Governo em 1961, sob o título Arquitectura Popular em Portugal (em dois volumes) iniciou.

“Após essa publicação, ele continuou a fazer visitas a esta zona, à Peneda, às Brandas de Castro Laboreiro… Há uma serie de exposições dele”, recorda Fernando Cerqueira Barros, explicando que esta análise “não é uma visão estética das casas”.

“Era até uma visão bastante funcionalista, porque tentavam perceber como é que as pessoas viviam e de que maneira tinham adaptado as casas à maneira de viver”, observou.

Nota ainda para um inquérito feito antes deste, “feito por uns engenheiros agrónomos, que se chamava inquérito à habitação rural, em que entraram muito no estado de conservação das casas, das condições de vida das pessoas, do recheio que as casas tinham”.

Fernando Cerqueira Barros refere-se ao trabalho feito no início dos anos 40 por um grupo de engenheiros agrónomos do Instituto Superior de Agronomia (ISA), cujo inquérito à habitação rural teria apenas dois de três volumes publicados “porque demonstrava um pouco o estado miserável em que as pessoas do campo viviam”.

Já o polido exercício no terreno feito a propósito do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal no final dos anos 50 acabaria por ser integralmente publicado. “Acredito que tenha havido algum cuidado, porque o inquérito não foi uma investigação académica, nem uma investigação pessoal, foi da responsabilidade do Sindicato Nacional dos Arquitectos, mas financiada pelo Estado Novo, portanto, se o estado financiou, houve algum cuidado”.

“Estes levantamentos não foram feitos para serem uma cartilha de como se deve fazer. O que concluímos, e neste trabalho sobre o Alto Minho tentamos mostrar isso [no documentário “Das Arquitecturas Tradicionais”], é a heterogeneidade das coisas: uma casa de montanha em Melgaço não é igual a uma casa de montanha na Serra d’Arga. Há imensa variedade”, notou.

Da Branda da Aveleira a Castro Laboreiro: As questões estéticas e o regresso do colmo enquanto isolamento térmico eficiente

Fernando Cerqueira Barros desmonta o pré-conceito do que é uma casa rústica e o quanto isso é requisito para reconstruir em aldeias típicas, hoje postais de um interior do país voltado para o turismo. Tem a casa rústica de ter granito minhoto, portas em madeira e cortinas de renda? “Um dos problemas é que se estereotipa muito e as pessoas ficaram com a ideia de que o rústico era isto e aqueloutro, e se calhar não era nada ou não tem de ser. A arquitectura não é uma questão estética, é construtiva e tipológica. O primeiro que se deve fazer, e que faço quando sou chamado a intervir numa casa antiga ou num edifício classificado, é uma investigação séria do que lá está e tento depois, com bibliografia, adaptar a intervenção às características do sítio, mas também as pretensões da pessoa”, explica. “Se temos uma casa pequena, que era utilizada pontualmente para pernoitar no verão, não podemos querer fazer daquilo um T3 ou T4 com suites, porque o espaço não chega”.

Deverão espaços como a Branda da Aveleira ou as brandas de Castro Laboreiro continuar reféns da sua história construtiva, no que aos materiais diz respeito? Fernando Cerqueira Barros defende que, não necessariamente. Há outras harmonias a ter em conta primeiro.

“Damos uma volta na Branda da Aveleira e é muito fácil, se pararmos um minuto a olhar para as casas, perceber quais eram as originais, recuperadas com pouca transformação e quais as muito mudadas ou feitas de novo. Esse estereotipo não estará a funcionar muito bem. Agora, é preciso ter esse estereotipo? Se calhar também não. Na recuperação de aldeias, às vezes tenta-se ir ao detalhe, mas o que está na essência do espaço, que é a volumetria das casas, a organização, é capaz de ser mais importante. A orientação solar, os modos de implantação, a questão da volumetria… Uma branda como a da Aveleira, em que as casas eram todas modulares pequenas, quase todas do mesmo tamanho, em pedra, de repente chega-se lá e faz-se uma casa com o quadruplo do tamanho das tradicionais, mesmo que fosse contruída com os materiais tradicionais, ela vai sempre salientar-se. Se calhar era preferível que ela fosse toda feita noutro material, que nem fosse tradicional, mas com uma volumetria parecida com as antigas. Ou que se fosse maior, fosse partida”, indica.

Quando os princípios da construção secular se encontram com os materiais modernos e as necessidades de conforto atuais, o arquitecto admite que essa harmonia devia ser revitalizada e promovida para dar nova vida à montanha, ao seu solo produtivo e até a toda uma economia que honraria a memória dos antepassados que transformaram a paisagem.

“Era interessante recuperar-se as coberturas em colmo. Do ponto de vista térmico, funcionavam muito melhor do que as de telha. As pessoas podem achar que é um retrocesso, mas se forem ver exemplos de recuperação, na Escócia, na Dinamarca ou na Bélgica, existem imensas reutilizações desses materiais na construção. Teria de se ter em atenção as questões técnicas, com os nossos materiais contemporâneos, mas utiliza-lo como parte estética e por ganho térmico que sabemos que tinha, acrescentando o facto de ser um material natural”, defende.

“E outra vantagem: Se se cultivasse o próprio colmo [a palha do centeio] na zona da branda, era uma maneira de se garantir que aqueles prados estavam limpos. Neste momento vemos que estão a ficar invadidos por vegetação espontânea e que em poucos anos vão ser zonas de matagal selvagem e vai perder-se o potencial. As pessoas às vezes tentam descomplicar isto, dizer que é consequência dos tempos, as pessoas abandonaram a agricultura, vivia-se mal, mas a verdade é que temos de perceber que há um potencial de solo produtivo em alta montanha, levaram anos a criar solo e que agora, num abandono de 30 ou 40 anos, vai ficar perdido. Esse potencial, até agrícola e natural que temos ali, acho que era importante que fosse mantido. Não por uma questão só de estética da paisagem, mas por uma questão de reserva de qualidade de solo”, argumentou ainda.

Sobre a estética, o aceitável e as ‘casas de emigrante’

“As questões estéticas facilmente mudam. Daqui a uns anos, se calhar vai achar-se chique, kitsch ou vintage, o estado das casas dos emigrantes dos anos 80. No século XIX também ninguém gostava das casas dos brasileiros porque achavam aquilo uma ‘pirosada’ e agora há muita gente a comprá-las, a recuperá-las e até há Câmaras com programas, a considera-las como património, e a fazer visitas”, observa Fernando Cerqueira Barros.

Contudo, o desenho, os gostos, o sacrifício que representam e as histórias de família que encerram nem sempre perdoam os problemas construtivos que estas casas de tijolo estruturalmente frágeis têm, em comparação com a atenção aos materiais e o exotismo que as ‘casas de brasileiro’ implicavam.

“As casas dos brasileiros do século XIX eram feitas com madeiras de grande qualidade, madeiras nobres exóticas. Muitas casas do emigrante do século XX são construções muito más do ponto de vista construtivo por uma questão: Começaram a ser feitas nos anos 60, 70 e 80 (séc. XX) com materiais que eram novos aqui na região, por pessoas que não tinham muitos conhecimentos técnicos para os usar. A utilização indiscriminada do azulejo, do tijolo e do bloco em zonas onde as pessoas sabiam construir em pedra, madeira, colmo e pouco mais, levou a erros construtivos. Há casas de emigrantes construídas há 15, 20 anos que estão cheias de problemas construtivos. Em alguns casos não vale mesmo a pena recuperar”, sentencia o arquitecto.

Contudo, Fernando Cerqueira Barros admite que o território também tem de compreender as histórias e ostentar o património ‘sentimental’ de quem vive ou viveu nele.

“Do ponto de vista identitário, são a história de vida daquela família, de alguém que emigrou, que passou muitas dificuldades para estar em França ou noutro país, para juntar algum dinheiro e construir a sua casa. Há uma família que ali cresceu e tem ali as suas memórias e que usa como casa de férias. O património também vale por isso”, conclui.

Texto publicado na edição impressa de Outubro do jornal “A Voz de Melgaço”

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