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Há 50 anos que Melgaço inaugurou a Biblioteca Fixa Nº27: Do museu do lobo embalsamado ao ‘contrabando’ cultural do século XXI
Na edição de 1 de Agosto de 1973, a propósito da visita do então Presidente da República Américo Tomás a Melgaço para diversas inaugurações decorridas em Julho, o jornal “A Voz de Melgaço” noticiava o périplo feito pelo concelho – da Vila a São Gregório e a Castro Laboreiro – e citava uma inusitada frase proferida pelo Chefe de Estado (prolífico em fases lapalissianas, mas esta com tons de fábula e inteligentemente humorada):
“Depois de descerrar uma lápida, esteve por instantes numa das salas dedicada ao Museu, onde apenas se encontra um lobo embalsamado. Alguém esclareceu, então, o Chefe do Estado de que aquela, por agora, era a única peça do museu, facto que levou o presidente a comentar: – Quer dizer que o museu só tem um lobo a guardá-lo”.
O espaço, que nunca chegou a ser uma verdadeira galeria museológica porque nunca albergou espólio desse catálogo além do lobo embalsamado (que ‘resiste’ ainda hoje tão feroz como em 1973) era a Biblioteca e ‘Museu’ de Melgaço naquele que é hoje o Solar do Alvarinho.
Assim, ainda que a visita às obras já concluídas se tivesse realizado com honras da mais alta representação do Estado em Julho de 1973, só a 21 de Novembro desse ano seria oficialmente aberta ao público, passando o edifício dos três arcos a funcionar como Biblioteca Fixa Nº27 da Fundação Calouste Gulbenkian, fruto de protocolo entre a Câmara Municipal de Melgaço e a fundação, que até ali apenas visitava “esporadicamente os concelhos” com uma carrinha itinerante, como recorda Margarida Codesso, bibliotecária, responsável pelos espaços da biblioteca municipal.
Assume, relativamente ao museu, que ainda hoje não é claro a que o projeto se referia, “talvez fosse para abrir um espaço multicultural à altura, mas a única coisa que seguiu foi a biblioteca”.
E essa sim, começou com 2243 livros, todos eles cedidos pela Fundação Calouste Gulbenkian à autarquia, fruto desse protocolo, e aí permaneceu até 1995, quando o fundo documental da biblioteca municipal já não cabia no emblemático edifício da Rua Direita e transferiu-se para a antiga cadeia, na Avenida Capitão Salgueiro Maia.
Foi a história desses dois edifícios que se assinalou precisamente no dia 21 de Novembro de 2023, tendo juntado utilizadores, funcionários e representantes do executivo autárquico num momento musical interpretado pelo melgacense Bruno Pereira e brinde de encerramento das comemorações da data.
Anteriormente, no mesmo mês, as comemorações começaram com a ação “Contrabando de Letras” que reuniu autores e artistas dos dois lados da fronteira, como forma de enaltecer a milenar relação entre o Minho e a Galiza, destacando e dando a conhecer um pouco das valências culturais dos dois povos.
A figura central deste “contrabando” cultural foi Xosé Velo (Xosé Velo Mosquera) um dos fundadores do DRIL (Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação) com um grupo de exilados espanhóis e portugueses. No início de 1961, juntamente com o galego Soutomaior e o português [Henrique] Galvão, participou no sequestro do transatlântico Santa Maria, uma ação que visava denunciar internacionalmente as duas ditaduras ibéricas.
Mas, 50 anos depois do primeiro passo na aproximação da comunidade aos livros enquanto elemento de consulta ao alcance de qualquer um, há novo caminho a fazer, como nota a responsável pelas bibliotecas do concelho, não sem antes fazer um reparo às limitações estruturais do atual espaço.
“Acho que as obras não foram pensadas para [o atual edifício] ser biblioteca municipal. Pelo menos não é uma obra que se adeque a biblioteca, daí o município ter há já alguns anos o projecto de reestruturação do edifício todo, não so o espaço da Casa da Cultura, mas também o da biblioteca. O espaço já não consegue albergar tudo aquilo que é necessário. Falta-nos um depósito onde acondicionar livros que retiramos, já não conseguimos crescer, é difícil estarmos a comprar fundo documental e não termos onde o colocar”, observou.
Que bibliotecas são as de hoje e que as que temos de pensar hoje para o futuro, num período temporal de 20, 30 anos? Margarida Codesso reconhece que a evolução tecnológica está a tornar os projectos para este efeito rapidamente datados, e que mesmo o projecto lançado há uns anos para a remodelação necessária “já tem de ser revisto”.
“É uma era digital em que estamos a voltar para o físico. Em que tem de se estar fora de portas, mas dentro também e receber pessoas. Não pode ser tudo só online”, defende.
Diz que a região já estudou “um projecto inovador para a plataforma de e-books”, sem apoios, mas admite que os moldes ensaiados neste projecto piloto só resultarão a nível nacional, com a rede de bibliotecas do Alto Minho, a rede nacional e a DGLAB (Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas), no qual a biblioteca compra o livro e “empresta os direitos ao utilizador, para ler o livros”. Será, segundo a bibliotecária, “um objetivo a médio prazo”.
Até lá, a convivência entre o tecnológico e o digital será pacífica. “O digital veio para ficar e o físico também veio para ficar”, diz e sublinha que o papel da biblioteca na sociedade “não é só livros”.
“Também é pessoas que querem conversar um bocado, isto faz parte da vida delas. O nosso público fidelizado é o dos depois dos 40, para requisitar livros, para lerem o jornal, para encontrarem outras pessoas. Quando há eleições temos até um bocadinho de debate político… é sempre interessante ouvir essas pessoas. Hoje as bibliotecas já não são um espaço solene. Não podemos pedir a um miúdo que vem com os amigos fazer um trabalho de grupo esteja calado, é impossível. E temos muitos alunos”.
“Vivemos de pessoas, de peças de teatro, música, dança. A nova biblioteca tem de ter mais salas ou ser mais ampla. A biblioteca ideal tem de ter mais espaços dentro dela, para espolio e para atividades”, conclui.
Face ao futuro das máquinas, diz que é importante “digitalizar, mas também preservar o papel do que é o fundo local”. No cumprimento com a modernidade, diz que “o catálogo online já está quase completo de tudo o que tínhamos, só nos faltam alguns exemplares da Voz de Melgaço”, atira.
José Adriano Lima, vice-Presidente da Câmara Municipal de Melgaço, esteve presente no momento festivo de encerramento das comemorações e admite preocupação com o futuro do espaço de consulta de livros e dinâmica cultural do concelho.
Do antigo espaço, majestoso e solene que serviu de biblioteca municipal, recorda-se “de andar lá à procura de algum livro e noutros momentos”, mas reconhece que “os tempos mudaram muito” e a noção de pesquisa é hoje mais abrangente, “mas o princípio, o que está na génese das bibliotecas, continua a ser importante”.
“Temos um projeto para a Casa da Cultura, já está definido, mas poderá ser necessária alguma mutação até à sua concretização, depende do hiato temporal que decorrer entre estes dois momentos. Há dois espaços principais para a intervenção, a biblioteca e auditório. As novas tecnologias fazem todo o sentido neste espaço também. No que diz respeito ao arquivo municipal, temos feito algum percurso na digitalização dos nossos conteúdos e na forma como se acede a eles. Faz todo o sentido que, num futuro projecto de biblioteca municipal, esse aspeto esteja também contemplado”.
2024 ficará marcado por “projectos muito pesados” para o orçamento municipal, nomeadamente no que respeita à vocação empresarial e industrial de nova geração, mas o vice-presidente e vereador da autarquia diz que há um projecto “maduro” que dependerá apenas “das condições de financiamento que vier a acontecer para este efeito”.
Em papel ou digital? José Adriano Lima diz que o novo projecto terá de contemplar meios de consulta nos dois suportes, importante é a mensagem que trazem, que podem até “para confirmar algumas ideias”.
Leitor frequente, o vice-presidente conta sobre o último livro que leu: “Ser Feliz No Trabalho”:
“Fala sobre o ambiente no mundo laboral. É bastante interessante e faz-nos refletir sobre a realidade. Sempre fui uma pessoa que tentou primar por um bom ambiente no dia-a-dia, seja no trabalho, em contextos familiares ou sociais, mas acho que no ambiente laboral é fundamental que assim seja. Passamos muito do nosso tempo a trabalhar, em ambiente de trabalho com os nossos colegas. É produtivo que haja um bom ambiente. Os livros também servem para nos confirmar algumas ideias”.