A Revolução veio também com as Primeiras Vinhas, ou como a família Cerdeira transformou a paisagem

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“Se hoje levantássemos um drone e olhássemos para o que era antigamente e o que é hoje, veríamos que tudo aquilo é vinha. Na carta militar de 1974 só víamos aquela”, sugeriu António Luís Cerdeira, mas não foi preciso requisitar o equipamento para estabelecer o comparativo.


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… E há uma foto que o comprova

No dia 29 de Maio, a marca Soalheiro assinalou junto da sua quase meia centena de trabalhadores e alguns convidados em torno da comemoração das primeiras vinhas contínuas plantadas em Melgaço, em parcela ainda hoje pertencente à família Cerdeira.

Para comprovar a vitalidade de algumas das cepas e a renovação coexistente que se foi introduzindo, os vinhos daquela parcela da Quinta de Soalheiro deram origem ao Primeiras Vinhas, o “motor” da conservação das vinhas velhas e de onde marca retira a cada ano mais um exemplo em garrafa de que os vinhos podem envelhecer e segurar vários recordes pelo caminho.

Uma prova vertical, realizada neste dia, mostrou que é precisamente a primeira colheita do Primeiras Vinhas, de 2006 – com 15% de barrica e 85% em depósito inox, com levedura espontânea – que melhor mostra a pujança de um ano quente e a maturidade de um vinho que envelheceu com elegância. Pede comida, mas é ele próprio um complexo desafio ao palato. Mas há outros grandes anos: 2008, 2015 e 2018, para citar os que mais estagiaram, que continuam generosos no nariz e muito agradáveis e persistentes na boca.

A comprovar-lhes a origem está uma imagem ortofotomapa, isto é, uma fotografia aérea (supõe-se que feita por militares e equipamento americano) que mostra a única parcela com vinha plantada e a estrutura (os postes) que a suportam, os tais que, aos olhos da população em 1974, pareciam “um cemitério”.

“Os pais dele tinham uns terrenos e ele resolveu pôr vinha. Foi em 74 e foi considerado uma loucura. O meu sogro estava renitente, mas acabou por se convencer. Não se via bem as videiras. Via-se os postes. As pessoas diziam que era um cemitério. Três a cinco anos depois começou a produzir e as pessoas viram que até dava algum lucro e começou toda a gente a plantar. Toda a gente seguiu a loucura”, recorda Palmira Cerdeira, em história que remete para o desafio dessa primeira parcela, publicada no site da marca.

“Ele” era João António Cerdeira, marido de Palmira e pioneiro na plantação de vinha contínua da casta alvarinha em Melgaço. Ousou ocupar o miolo da terra – precisamente aquele que era guardado religiosamente para cereais como o milho – com uma vinha que não garantia, vindo o Outono daquele ano, a colheita que outros cultivos de então já permitiam. Foi preciso esperar, mas não foi fácil contrariar o paradigma.

“É importante o pioneirismo, a ideia fantástica do meu pai, a inovação num período difícil, em que ele vinha do Ultramar e era uma viticultura de subsistência. Criar esta primeira vinha contínua de Alvarinho em Melgaço, que depois seguiu para a criação da primeira marca, em 1982”, recorda também o filho do casal fundador, António Luís Cerdeira.

Essa vinha foi, como reconhece hoje, o “alicerce da ideia e que não terminou com essa vinha em concreto”.

Em Monção, a menos de 20 quilómetros, havia três produtores. Contudo, a expectativa em torno da estranha parcela de postes nus e vinha jovem plantada por João Cerdeira transformar-se-ia em entusiasmo quando a casta mostrou o seu pleno produtivo.
“Foi um exercício de inovação, mudar a viticultura. Com certeza o meu pai nunca imaginaria nessa altura que essa inovação iria transformar radicalmente o território aqui em Monção e Melgaço, que antigamente tinha uma mancha de milho e hoje tem uma mancha de vinhas, e isso é aquilo que queremos marcar com o dia de hoje. Mais do que comemorar uma data concreta, um facto que para nós é extremamente importante, é comemorar a vivência de um território que hoje tem um ouro que se chama Alvarinho, eu diria que é platina, vivida por muitas famílias”, notou o enólogo continuador da vontade de inovação da marca Soalheiro.

Se hoje levantássemos um drone e olhássemos para o que era antigamente e o que é hoje, veríamos que tudo aquilo é vinha. Na carta militar de 1974 só víamos aquela”, sugeriu António Luís Cerdeira, mas não foi preciso requisitar o equipamento para estabelecer o comparativo.

Uma rápida análise via Google Earth (imagens comparativas abaixo), em imagens recentes feitas sobre aquela área do território Alvaredo, em comparação às de 1974, confirmamos não só que a ocupação do território continua intensa, mas agora com o Alvarinho no centro, a floresta em jeito de moldura e uns laivos de industrial a pontilhar uma pequena porção do terreno. O milho desapareceu.

As primeiras vinhas do Soalheiro, imagem de 1974 (imagem do site da marca)
A parcela da primeira vinha, origem do “Primeiras Vinhas” e terrenos circundantes (captura Google Earth)

 Entre a primeira plantação, a estranheza, a aceitação e a propagação, passaram-se 50 anos. A geração que viu nascer o fenómeno ainda tem idade e entusiasmo para contar como foi, na sua maioria. Palmira Cerdeira é exemplo disso.

“Eu diria que foi um processo rápido. Cinquenta anos numa vinha, ou na viticultura, é rápido. Não nos podemos esquecer que a Alemanha tem regiões com 300 e 400 anos. O Douro é muito mais antigo. Isto mostra que realmente esta região tinha algo diferente, tinha resiliência em querer mudar e já tinha o microclima e o solo”, frisa António Luís Cerdeira.

O despovoamento, a saída de jovens e a diversificação de sectores tornam a atividade da vinha cada vez menos fundamental na sobrevivência da população, sobretudo para os que tem pequenas parcelas, mas o produtor diz que a viticultura de fim de semana continuará a ser um importante dinamizador da economia local.

Neste momento somos 47 trabalhadores diretos [a operar nos diversos sectores da marca Soalheiro, desde as infusões ao enoturismo e ao vinho, que lhe deu origem] mas na verdade o part-time é algo muito típico da viticultura de minifúndio. Não é rentável, para quem tem três mil metros de terreno, viver só de 3 mil metros de vinha, por isso é sempre uma viticultura complementar. O Solheiro começou assim, o meu pai e a minha mãe começaram com este negócio em part-time [ele era funcionário das Finanças, ela professora do Ensino Básico].  Todos conhecemos famílias em Melgaço que têm outras atividades e tratam das suas vinhas ao fim-de-semana. Socialmente e do ponto de vista económico, a viticultura de fim-de-semana deveria ser um caso de estudo, sobre o que ela tem de impacto no rendimento das famílias”, considerou.

Hoje, o Soalheiro tem 47 pessoas, 7 dias por semana, no caso do enoturismo, a olhar para tudo o que envolve o sector numa “perspetiva completamente viável, funcional e profissional, que permitem que essas outras pessoas, os viticultores, mantenham essa viticultura de part-time”.

Com o envelhecimento da primeira geração, que plantou e suportou os custos da manutenção e crescimento do sector do vinho no concelho, as marcas concentrar-se-ão em torno dos grandes transformadores da sub-região? António Luís Cerdeira rejeita o entendimento de que a viticultura esteja a envelhecer por cá, tal como no país.

“Nós temos aqui muita gente nova, que é gerações que seguem a geração e sobretudo porque temos valorização da uva. No nosso Clube de Viticultores queremos mesmo formar um exemplo concreto. Nós temos a trabalhar no Soalheiro, em estágio, dois filhos de viticultores. E porque é que elas estão aqui, com 18 anos? Porque vão seguir a viticultura dos pais. E como eles haverá outros que também vão fazer isso, se calhar de uma forma mais de prestação de serviços ou num outro contexto económico. Vamos ter, fruto das exigências, quer regulamentares, quer dos mercados de exportação, alguma concentração nas empresas, mas vamos ter sempre os pequenos viticultores que fazem o seu vinho em casa, com pequenas marcas que engarrafam e cuja tendência será vender na Festa do Alvarinho do Fumeiro, cuja tendência será fazer um mercado muito mais local e isso também tem sucesso, se o turismo crescer”, observou.

A Revolução também no vinho

“50 anos das primeiras vinhas, que coincidem com os 50 anos da Revolução [de 25 de Abril], acho que é uma simpática coincidência, mas com certeza também relevante, porque a plantação da primeira vinha contínua em Melgaço em 1974, trouxe uma verdadeira revolução para o território. Uma paisagem, pontuada por milho e cereais, nessa altura já numa agricultura de subsistência decadente e em fim de linha, foi substituída a partir daí por um contínuo de vinhas da casta alvarinha que veio revolucionar a sub-região” considerou o Presidente da Câmara Municipal de Melgaço, Manoel Batista, presente nesta comemoração.

A renovação terá começado há 50 anos, mas o edil reconhece que foi sobretudo “nos últimos 30” que a sub-região de monção e Melgaço soube concretizar “uma produção e um crescimento extraordinários. Hoje temos vinhos qualificados, diferenciados até pelo sítio onde são produzidos, se são produzidos mais próximos do rio, mais a meio da cota do território ou em zona de montanha. Isso permite-nos ter vinhos muito diferenciados, mas permite-nos também a qualidade do território, fazer com que os produtores afirmem vinhos com enorme capacidade de envelhecimento. A prova provada é o que fizemos hoje, provar o Primeiras Vinhas desde a sua primeira edição até hoje, com vinhos de elevadíssima qualidade que são capazes de evoluir”, avaliou.

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