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Um novo ‘capitão’ de Abril: Manuel Morais – a luta contra a extrema-direita e uma data de aniversário muito especial
Natural de Paderne, concelho de Melgaço, Manuel Morais, agente operacional na Unidade Especial da PSP, é um dos rostos da combatividade da geração que teve os quentes Verões que se sucederam ao 25 de Abril de 1974 como berço, ou nasceram já na periclitante caminhada para a liberdade.
Talvez o facto de ter nascido precisamente no dia 25 de Abril – mas nove anos antes do golpe de Estado encabeçado por Salgueiro Maia – ou o sangue na guelra pelas origens melgacenses, o fazem levar a sério as suas lutas. Conhecemo-lo por trazer a lume a questão do racismo e a sua luta contra os extremismos, que já lhe valeram polémicos e mediáticos confrontos com o líder do Chega, André Ventura.
Não estranhará também o vigor do combate quem conhecer pessoalmente Manuel Morais ou o seu passado. Desde 1986 a 1990 foi militar nos Comandos; desde 1990 até hoje operacional na unidade Especial de Policia; foi vice-presidente da ASPP [Associação Sindical dos Profissionais da Polícia] durante 30 anos, vice-presidente da internacional de Polícia cerca de oito anos; fundador e vice-presidente do “100 Violência”, observatório da criminalidade sobre as crianças, movimento do qual é presidente o ex-Ministro da Administração Interna, Rui Pereira.
Manuel Morais é, por isso, uma escolha natural quando se procuram figuras do nosso tempo para ilustrar uma revolução da qual o país comemora este ano 49 anos de democracia e que – sem descurar a determinação dos “capitães de Abril” – precisa de olhar para os ‘capitães’ de hoje, aqueles que, na era digital, saem todos os dia para a rua capazes de encabeçar as revoluções do nosso tempo.
A Voz de Melgaço (AVM) – Quantos anos tinha, a 25 de Abril de 1974?
Manuel Morais (MM) – Tinha 9 anos, andava na Quarta Classe e era aluno do professor Vaz, tal como o meu colega e maior amigo de infância, Carlos Vaz, hoje um prestigiado cirurgião de quem tenho imenso orgulho.
AVM – Onde estava quando se deu o golpe de Estado, e de que forma percebeu o que se passava?
MM – Na altura vivia no Peso, no andar de cima do café do “Cândido” que na altura pertencia aos meus tios, Áurea e Luís, e era um café frequentado pelos ilustres da nossa terra. Eu, sempre que podia, escapulia-me para o café para ver as séries policiais da altura, claro, na televisão espanhola: O Tenente Colombo, o McCloud, O Imortal, entre outras. Recordo-me que nessa noite encontrava-se lá o senhor Cota, dono da serração, o senhor Ribeiro solicitador, o senhor Lira, entre outros. Jogavam às cartas num reservado que este café possuía. Quando foi anunciada a revolução na televisão, foi uma festança, tive direito a tudo, Champanhe, bolos, pasteis de bacalhau…. Recordo esta data como a melhor festa de aniversário. Os senhores andavam comigo pelo ar numa alegria desmedida felicitando-me por fazer anos neste dia singular, demorei tempo a descobrir que a alegria de muitos dos que festejavam tão efusivamente se traduzia em medo e incerteza…
AVM – Os tempos que se seguiram mexeram consigo, ou influenciaram-no de alguma forma?
MM – Tenho o 25 de Abril presente sempre que respiro. O dia da Liberdade do meu povo é a data mais feliz da História do nosso país, seria também o dia mais feliz para o meu avô Manuel Morais, Mestre da música da Banda dos Bombeiros Voluntários de Melgaço, ele que lutou e sofreu nas cadeias da PIDE, já acamado e eu muito criança. Contou-me as sevícias e castigos pidescos a que foi submetido, ele queria que eu soubesse, desde sempre quis ser um guerreiro, estar bem preparado para lutar pelo bem, pela justiça e pela dignidade humana. A ida para os Comandos foi um acto reflectido e carregado de intenção, eu queria ser o melhor guerreiro e por isso nada me podia parar… E nada me vai impedir de defender os valores de Abril, será assim até o último alento…
AVM – Como era, ou que imagem guarda de Melgaço, naquele tempo?
MM – No Lugar de Golães, de onde sou, havia dois guardas, o senhor António Domingues, GNR, e o senhor Álvaro Martins, Guarda Fiscal, pais dos meus amigos de infância, o Adelino “Carteiro”, o Alberto Domingues e o Pedro, também carteiro nos Arcos, este filho do senhor Álvaro. Além de serem dois seres extraordinários, amigos de toda a gente e dispostos a ajudar o próximo, vivem na minha memória como pessoas que viveram dignamente e merecem ser recordados como tal. Tive outro amigo de infância, o Luís Rodrigues, com quem brincava muitas vezes, o seu pai era Polícia e só depois do 25 de Abril soube que era da PIDE. Foi preso e a família acabou por desaparecer do concelho de Melgaço.
AVM – Foi militar Comando do Exército. Que imagem se tinha de Jaime Neves (foi comandante do Regimento de Comandos, na Amadora) enquanto elemento participante do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 e determinante no 25 de Novembro de 1975?
MM – O Jaime Neves é a maior referência para todos os COMANDOS. Homem de coragem e determinação inabaláveis, serviu a pátria e o país com honra merece ser lembrado como herói. Passou-nos um legado a todos os Comandos: “Vale mais morrer de pé do que viver ajoelhado”. Tinha muita preocupação com os seus homens, não permitia que ninguém os maltratasse e exigia condições para que nada faltasse à sua tropa, odiava cobardes e admirava a coragem. Bastava levantar o braço e todos os Comandos o seguiam sem hesitação, era um pai para o melhor e para o pior. Tive a honra de pontualmente conviver com ele, era um homem simples mas com uma dignidade ímpar, enorme.
AVM – O seu passado sindical e mesmo a determinação em certas causas, com mais ou menos dissabores, configuram-no como um lutador pelas liberdades de hoje. Actualmente, as lutas já não se fazem na rua por “comodismo” social, ou é mais difícil provocar a mudança (veja-se o caso de França, com os manifestos contra o aumento da idade da reforma) de políticas sociais, governos, etc?
MM – A Europa está a atravessar um período perigoso e conturbado, o avanço da extrema-direita é um facto cada vez mais evidente. No nosso país estão em causa todas as conquistas de Abril e consequentemente a Democracia. As pessoas deixaram-se envolver no discurso do ódio, expurgaram nele todas as frustrações. O senhor deputado André Ventura teve o mérito, conseguiu que o seu discurso seja o discurso padrão das forças de segurança e de uma substancial parte dos eleitores: A culpa dos males do mundo é dos negros, dos ciganos, dos imigrantes, e dos subsídio-dependentes, acabando com estas moléstias, vamos viver num verdadeiro paraíso.
AVM – Uma das suas maiores lutas em prol da igualdade (também sujeita a alguns dissabores) tem a ver com o antirracismo, nas mais diversas plataformas. Mas Portugal, que ergue a bandeira, assim como a UE, do bem-receber dos refugiados da guerra da Ucrânia – ou no caso concreto de Melgaço, os bons exemplos de melgacenses que se voluntariaram para ajudar em diversas missões humanitárias – tem no seu seio casos como o dos imigrantes em Beja, mais conhecido, mas há outros, na Covilhã, por exemplo, onde há pessoas a viver em condições sub-humanas e pagas muito abaixo do salário mínimo nacional. O eterno “país de brandos costumes” é-o por consciência dos seus valores, da sua astúcia, por resignação às suas limitações ou estamos simplesmente a acreditar que “o povo é sereno” mesmo perante a fumaça que se vai formando?
MM – É verdade que tem de existir mecanismos que fiscalizem a imigração de forma a não permitir a exploração humana e combatam a redes de tráfico humano, as empresas que os subcontratam e o produtor, o fazendeiro, para quem essas pessoas vão trabalhar. Tem de existir uma corresponsabilização de todos, em que o estado evidentemente não pode ficar de fora…
Tenho esperança de que as pessoas decentes, os que ainda se preocupam com o humanismo lutem e evitem um retrocesso civilizacional. Se é verdade que a extrema-direita está a avançar a passos largos, não é menos verdade que os grandes partidos, a meu ver com responsabilidades acrescidas, negam restruturar-se. As pessoas já não se sentem representadas. E querem participar nas responsabilidades, querem sentir que são algo para além dum voto. Não fui eu que inventei o nome “democracias representativas”, mas pelo menos poderia ser o mote para uma discussão alargada com o objectivo de uma sociedade do futuro, na tentativa de evitar extremismos.
AVM – Qual é a sua melhor memória ou sentimento de liberdade da vivência em Melgaço? É diferente o sentimento de liberdade e segurança entre Melgaço e Lisboa?
MM – Quando estou em Melgaço sinto-me em casa, sinto-me um cidadão livre, pleno, estou entre os meus, sinto-me feliz. Nas horas mais difíceis, a força dos melgacenses e dos Comandos ajudou-me a resistir e continuar a acreditar que vale a pena lutar pelos princípios de Abril, que tem como fundamento a Liberdade e a Democracia, ambas baseadas na “dignidade humana”. Em Lisboa vivo em alerta constante e o que mais me custou foi perceber foi que os meus inimigos, os inimigos dos meus valores, estão do lado de dentro.